segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Prepare o seu coração...

Não quero idealizar o ano que chega.

Não quero fazer votos.

Não quero me escravizar a compromissos.

Não quero circular dias na agenda.

Não quero entrar na roda-viva de um mundo que não me conhece mas que busca roubar minha alma.

Quero saber de onde venho.

Quero nutrir minhas raízes.

Quero reafirmar minha identidade.

Quero me alimentar de minhas antigas histórias.

Quero ter consciência de que é preciso dizer não.

Quero seguir em frente, mesmo vendo a morte.

Somente assim terei o que contar.

Somente assim reconhecerei que há coisas fora do lugar.

Somente assim poderei, mesmo que ingenuamente, pensar que há coisas a serem consertadas.

Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar, eu vivo prá consertar


Disparada, de Geraldo Vandré, me chama, me prepara, me alimenta para mais um ano.

Ouça Disparada na versão original do Festival de Música de 1966 e em nova interpretação. Ambas por Jair Rodrigues.

http://www.youtube.com/watch?v=82dRs2z6iQs

http://globotv.globo.com/rede-globo/altas-horas/v/jair-rodrigues-se-apresenta-com-o-disparada/2555864/

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Querido Jesus...

Querido Jesus, a cristandade está próxima de comemorar teu nascimento. Cerimônias serão realizadas, haverá apresentações musicais, encontros entre amigos e familiares. Alegria, comida, bebida.

De minha parte, gostaria apenas de fazer alguns pedidos no teu dia.

Querido Jesus, que neste natal a tua experiência de nascimento humilde, em uma família pobre, em um lugar emprestado de animais, envolto em panos rotos, o leve a olhar para tantas crianças no Brasil que passam por experiência semelhante ou pior.

Muitas delas não gozarão do privilégio que você teve. Elas não chegarão a erguer-se em suas próprias pernas, não terão a oportunidade de chamar os pais pelo nome, não farão uma refeição sozinhas. Elas nascerão mortas ou deixarão suas tristes vidas minutos ou horas após suas mães as tomarem em seus braços.

Os pequeninos serão vítimas de políticas governamentais equivocadas ou criminosas, feitas por gente que privilegia votos e despreza crianças.

Esses bebês são gerados por mães desnutridas e famintas, conhecendo a luz em casebres e barracos indigentes. Seus pais choram em silêncio, dia após dia, ao verem os filhos pedindo comida e não tendo o que oferecer.

Querido Jesus, olhe para essas crianças e mude o destino delas. Permita que a estrela que brilhou em Belém também fulgure sobre seus lares. Faça com que a estrela conduza magos com presentes até elas. Os presentes podem ser bem mais simples e humildes do que aqueles que você recebeu. Basta algum dinheiro para medicamentos, poucas trocas de roupa, ou mesmo alguns pacotes de fraldas.

Ah, e não se esqueça, querido Jesus, que nas cidades onde essas crianças nascerem exista pelo menos um posto de atendimento médico, com pelo menos um pediatra. Muitos recém-nascidos precisam deles. E não há problema com as filas. Os pais estão acostumados a elas.

Querido Jesus, que existam pessoas que festejem a chegada desses humildes bebês como os anjos ao anunciar o teu nascimento. Que eles sejam visitados por pessoas alegres como os pastores que foram vê-lo. Que os pequeninos sejam abraçados por Simeão e Ana, como avós fazem com seus netos desejados e queridos.

Querido Jesus, peço que as crianças pobres e humildes do Brasil gozem da mesma experiência tua: crescer em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens.

Jesus, se me permite, gostaria de alterar a ordem das palavras. Que, antes de tudo, as crianças pobres e sofredoras do Brasil cresçam em "estatura". Afinal, muitas deixam a vida ainda pequeninas, nunca chegando a experimentar a sabedoria e a graça que o Senhor tem para elas.

Querido Jesus, pedi muito? Acho que não. O senhor, que antes de ser verdadeiro homem-Deus foi uma verdadeira criança-Deus, certamente compreenderá meus pedidos.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Desgraça pouca é bobagem!

O trânsito está infernal!

Talvez esta seja a frase que mais se ouve nas ruas das cidades brasileiras, e já foi o tempo em que tal constatação era privilégio das metrópoles.

Coopera com o caos o sem número de carros particulares nas ruas e o sistema de transporte público - ônibus urbanos e mesmo o metrô.
Em se tratando de ônibus, o problema nem sempre está apenas no trânsito, mas no próprio ônibus.

Tempos atrás peguei um ônibus de determinada empresa para retornar de São Paulo a Campinas. Era verão. Final de tarde... no horário de verão.

O ônibus encosta no terminal pontualmente atrasado.

Os passageiros começam a entrar e, quando subo o primeiro degrau, recebo como mensagem de “boas vindas, entre, por favor”, uma onda de ar quente que quase me derruba. Resolvo sair do ônibus e aguardar até o último minuto para entrar.

Ao me sentar e puxar o cinto de segurança... cadê ele? Foi passear! Não estava ali, desapareceu, sumiu, sei lá!!! Fico indignado pelo descaso, mas fazer o quê? Pedir para abrir a porta que eu quero descer???

Todos em seus devidos lugares, sem cinto de segurança, suando às bicas, e então o motorista liga o motor e com ele o ar condicionado. Sim, para efeito de economia, enquanto o ônibus está parado o ar condicionado deve estar desligado.

Começamos a nos deslocar e sinto algo estranho. Continuo com calor. Olho para a orifício acima de meu assento de onde deveria vir o ar refrescante, e nada. Há um ar, sim, mas quente como o restante do ar que me envolve. Espero um pouco. Passados 20 minutos, já na rodovia, resolvo falar com o motorista. Pergunto se pode ligar o ar condicionado, visto que o que está funcionando é apenas a circulação de ar. Ele me responde que já está ligado, e que logo eu e os demais passageiros sentiríamos a temperatura cair.

Nada. Resolvi não falar mais para evitar uma discussão que não traria novidades. Vamos com calor e tudo! Adaptei-me à situação e resolvi ler, ouvir música. De repente, chuva. Bom, pois poderia diminuir a temperatura e nos ajudar. De fato, diminuiu um pouco, mas não ajudou em nada.

Percebo, alguns assentos à frente, que o lugar de onde deveria vir o ar que nos aliviaria torna-se outra coisa: um chafariz! Sim, o ônibus tinha goteiras! E a água começa a entrar, e rola, rola, rola, adivinha para onde? Sim, em minha direção e começa a pingar sobre minha cabeça.

Fazer o quê? Levanto-me e procuro outro assento que não esteja sujeito às intempéries.

E assim transcorre a viagem.

Diferentemente do que sempre faço, ao chegarmos não me dirijo ao motorista com as palavras: “Muito obrigado!” Simplesmente seria muita hipocrisia para com ele e a empresa que representa. Nesse dia, simplesmente não deu. Desgraça pouca é bobagem!

domingo, 17 de novembro de 2013

Voz da alma

Voz da alma

“SENHOR, o meu coração não se elevou, nem os meus olhos se levantaram; não me exercito em grandes assuntos, nem em coisas muito elevadas para mim”.

Sim, já pensei em grandes coisas, desejei ser poderosa e vista com admiração.

Sim, já tracei projetos ambiciosos e planejei altos voos.

Sim, já me vi como o centro das atenções e motivo de comentários elogiosos.

Sim, já me senti saudável e invencível.

Mas minha alma adoeceu.

Meu corpo enfraqueceu.

Minha mente teima em ser dispersa e rebelde.

Encolhi e temo a escuridão.

Não consigo me definir.

Olho para mim e não me reconheço.

Sinto medo de minha imagem e de minha voz desfiguradas.

Flutuo sobre minha pobre vida e sinto-me desamparada.

À minha voz titubeante une-se outra voz.

Som inarticulado que despreza meus ouvidos.

Voz que fala ao coração.

Voz que ecoa de tempos primordiais e chega a mim.

Convite à quietude e à entrega.

Chamado ao abandono e ao reencontro.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Crianças, ah... crianças!

O mundo infantil é fascinante. A simplicidade, a falta de orgulho, de preconceitos, de cobiça por vezes chega a emocionar.
A gente olha a molecada e pensa: caramba, eles vivem em outro mundo! Um mundo de sonhos, de tempos e espaços diferentes daqueles dos adultos.

Mas não nos enganemos. As crianças também levam a vida a sério. E como! Prometeu? Cumpra! Falou? Não volte atrás! Sim é sim! Não é não! Nada de falas e piadinhas com duplos sentidos. A criançada não está para brincadeira. Dou dois exemplos.

Quando meu filho Timóteo era pequeno, sempre ia conosco ao Supermercado. Primeiro e até aquele momento único filho, eu e Cláudia o levávamos em quase todos os lugares em que íamos.

Passa por um corredor, olha um produto, vira pra cá, vira pra lá e, de repente, mesmo que tentássemos evitar, lá estava ele... o corredor dos brinquedos! Resultado? O pedido:

- Mãe, compra pra mim?

E a resposta, quase sempre a mesma, em um misto de verdade e resolução pragmática do problema:

- Mamãe não tem dinheiro agora, filho!

Certo dia Timóteo, ao ver aquele brinquedo sem o qual definitivamente não conseguiria mais viver, tomado de desejo e necessidade, mas lembrando do que a mãe já havia dito vezes sem conta, soltou, em alto e bom som, no meio do corredor repleto de pessoas a frase:

- MÃE, QUANDO A SENHORA TIVER DINHEIRO, COMPRA PRA MIM?

Saí de perto como se nunca tivesse visto aquela criança na vida, abandonando egoisticamente Cláudia à sorte que o destino de mãe lhe reservava.

O segundo exemplo vem do final dos anos oitenta. Naquela época eram comuns os restaurantes vegetarianos. Aproveitando a comida saudável e mais barata, comíamos com frequência neles. E Timóteo conosco.

Ele ainda não conhecia as variações, classificações e categorias de restaurantes. Para ele, era um lugar onde havia comida, e pronto. Em uma ocasião em que estávamos no centro de Joinville fazendo compras, resolvemos almoçar em um restaurante vegetariano. Depois de caminharmos bastante, estávamos os três cansados, principalmente o pequeno Timóteo.

Entramos no restaurante cheio e com dificuldade conseguimos uma mesa. Como o serviço era self service, Claudia pegou a comida para Timóteo, enquanto esperávamos sentados. Ao ver o prato diante de si, cheio de folhas, tomates, brócolis e pedaços de carne de soja, o cansado e faminto Timóteo não suportou e, indignado, expressou seu desejo de modo que todos, pais e fregueses pudessem ouvir:

- QUERO CARNE! QUERO CARNE!

Nesse exato momento nos tornamos o centro das atenções no restaurante. O tempo congelou, e era possível sentir no ar o peso da pergunta: - quem fez pedido tão absurdo?

Com o desejo de sair correndo dali, mas sem poder, e não conseguindo articular qualquer desculpa, o que definitivamente seria pior, restou-nos permanecer sentados procurando fazer de conta que nada tinha acontecido e, ao mesmo tempo, esclarecer o jovem cliente da impossibilidade de atendermos seu pedido.

Pois é. As crianças levam a vida a sério, MUITO A SÉRIO!

sábado, 2 de novembro de 2013

Sou médico!

Na época em que morei em Joinville, SC, com certa frequência eu e Cláudia íamos para Itapetininga, SP visitar os familiares.

A viagem durava cerca de oito horas até São Paulo, e de lá mais duas horas e meia até Itapetininga. Normalmente viajávamos à noite, na esperança de dormir um pouco. Mas aqueles que ainda se lembram dos ônibus convencionais da Itapemirim dos anos oitenta sabem que havia pouco de realidade nessa esperança.

Em uma dessas viagens em que eu estava sozinho, no meio da madrugada o passageiro que viajava ao meu lado começou a passar mal, e em seguida sofreu um ataque epiléptico. As convulsões faziam com que batesse repetidamente a cabeça no banco da frente.

Despertado no meio da noite, minha reação diante de tal cena, assim como de todos os que estavam próximos, foi saltar para a frente ou para trás, para longe daquilo que não entendíamos. Felizmente a pessoa se restabeleceu rapidamente e a tranquilidade voltou. E achei outro lugar para sentar.

Pouco tempo depois, nova crise, agora mais violenta.

Pancadas mais fortes no assento, em uma coreografia de dar arrepios. Nova perplexidade e temor coletivos, acompanhados de uma imobilidade geral. Até o momento em que ouviu-se uma voz do fundo do ônibus, que se aproximava rapidamente do centro da crise: - "Com licença, sou médico!". - "Licença, sou médico!".

Pedido atendido, socorro prestado, paciente mais tranquilo, continuamos a jornada até a próxima parada. Ali a vítima foi encaminhada ao hospital da cidade para atendimento e todos ficamos mais aliviados.

Enquanto tomava café e esperava o retorno da viagem, o médico aproximou-se de mim puxando conversa.

- Situação complicada a do moço, não?

- É verdade, mais ainda bem que você estava no ônibus.

- Pois é, mas... sabe, se eu dissesse realmente o que faço, o pessoal não me deixaria atender o rapaz.

- Sério? Por quê? O que você faz?

- Sou veterinário.

sábado, 26 de outubro de 2013

Quando cresce...

No início do casamento eu e Claudia moramos por quatro anos em Joinville, SC. Foram anos marcantes, com muita felicidade e algumas lutas.

Começo de vida a dois, início de vida profissional, nova cidade, novos relacionamentos.

Santa Catarina é um estado lindíssimo. Por um lado, um dos litorais mais belos do Brasil, incluindo a fascinante e encantadora Floripa. De outro, as cidades de forte influência alemã, como Blumenau, Brusque, Pomerode e a própria Joinville. Se contar que, mais para o interior, já no planalto, há as cidades que surgiram sob influência gaúcha.

E como casal jovem que foi criado no interior de São Paulo, sentimos diferenças culturais. Hábitos alimentares, a visão do Brasil a partir do Sul, o alemão sendo falado com naturalidade nas ruas e comércio por pessoas idosas, os programas de televisão produzidos na região, a forma mais direta de relacionamentos.

Nesse contexto, tivemos vários e queridos amigos que participaram de um momento especial de nossa vida: o nascimento de nosso primeiro filho, Timóteo.

Preferimos que ele nascesse em Itapetininga, SP, onde se encontravam nossos familiares. Passados alguns dias, retornamos para Joinville. Como é natural, começamos a receber visitas para saudar a chegada do novo membro da família.

Em um desses dias, um casal amigo foi conhecer Timóteo. Depois de cumprimentos e um bate-papo inicial, fomos para o quarto do nenê. Os amigos postaram-se diante do berço onde Timóteo dormia. Ela olhou... olhou... fixou um olhar clínico na criança e, virando-se para os orgulhosos pais, disparou a pérola: - Dizem que quando cresce a criança fica bonita.
Eu e Claudia trocamos olhares... mas não dissemos nada, tomados de perplexidade. Na realidade, a frase completa era: “Quando a criança é muito feia, dizem que ao crescer fica bonita”. Com sua delicadeza paquidérmica, nossa amiga havia nos poupado de ouvir o ditado por completo.

Apesar do choque, continuamos amigos. Com o passar do tempo, viemos a saber que os catarinenses, pelo menos aqueles com quem convivíamos naquela época e lugar, eram diretos nos relacionamentos, às vezes rudes. Tentamos nos adaptar a isso.

O tempo passou e incumbiu-se de mostrar que pelo menos em um aspecto nossa amiga tinha razão: Timóteo tornou-se uma criança linda, e hoje é um homem muito bonito.

Mas nunca mais esquecemos o ditado popular (ou impopular???).

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Cartas de felicidade

Anos atrás tomava os chamados “ônibus de linha” para ir de Campinas, onde moro, a São Paulo, onde trabalho. Ia de rodoviária a rodoviária.

No final do ano lá estavam eles no Terminal Tietê. Mesmo passando rapidamente, sempre em cima da hora de tomar o ônibus, fitava-os até onde o pescoço permitia e o ângulo de visão alcançava.

No outro dia, no outro ano, lá estavam eles. Sentados, sempre tendo diante de si pessoas procurando ajuda. Às vezes até fila havia.
Não sei se eram de alguma ONG, se eram voluntários. Mas gastavam horas escrevendo cartas. Certamente eram pessoas analfabetas que se postavam diante deles. Provavelmente pessoas que chegavam a São Paulo vindas de outras regiões do país, talvez alguns que partiam da cidade. Ou mesmo aqueles que, sabendo do serviço, o procuravam para enviar cartas a familiares e amigos queridos.

E o conteúdo? Imagine!

Descrições felizes de um novo emprego, da boa recepção na casa do parente em que estão alojados, do primeiro salário, dos passeios pela cidade, da partida de futebol no Pacaembu, da expectativa de visitar os familiares no próximo ano. O dinheiro, dobrado com cuidado, no envelope selado com o orgulho daqueles que, distantes, não se esquecem da pobreza e sofrimento dos que ficaram.
Em um daqueles dias, não resisti. Cheguei mais cedo à rodoviária e, diante de um escrevente um tanto perplexo, disse que queria enviar uma carta para meu filho. Mas não teria meu nome como remetente, teria o do Papai Noel! E assim foi feito. Palavras de carinho, afirmações de que o Papai Noel se lembrava de João Guilherme, conselhos para respeitar papai e mamãe (malandragem, não?!) etc.

E esperei. Se não me engano, levou cerca de uma semana ou pouco menos para a carta chegar. Certo dia, quando retorno de São Paulo, encontro João Guilherme eufórico. Havia recebido uma carta do Papai Noel!

Ele tinha cerca de dois anos de idade. Foi emocionante vê-lo falar da carta, mostrar a carta, ver toda a magia do natal concentrada, contida em um pedaço de papel.

João Guilherme nunca mais recebeu cartas do Papai Noel. Talvez preguiça minha, mas meu álibi é que deixei de tomar “ônibus de linha”. Mas quem sabe não me animo neste final de ano e dou uma passadinha pelo Terminal Tietê?

sábado, 12 de outubro de 2013

As frutas e eu

Vitaminas A, B1, B2, C, cálcio, ferro, fósforo etc.

Laranja - previne gripes e resfriados; maçã - combate diarreia; pera - atua contra a hipertensão e é diurético; banana - combate a anemia; maracujá - é calmante; abacate - age contra o reumatismo.

Com elas pode-se fazer salada de frutas, geleia, doce – figo, pêssego; torta – maçã, banana, morango; goiabada, marmelada, fritar – banana; comer com açúcar e limão – abacate.

Mas não é dessa forma que vejo as frutas.

Elas, acima de tudo, lembram-me situações, pessoas.

Quando pequeno, tio Aimoré passava em casa, com outros primos à tiracolo, e nos levava para a casa de nossa vó em Paranapanema. Enquanto ele ia pescar, nós ficávamos na casa da vó. Os quintais (sim, eram vários quintais separados por cercas) eram enormes. Brincávamos de tudo que se pudesse imaginar. Mas em relação à minha avó, ficou uma imagem: em várias refeições, ela botava uma banana no meio do arroz e feijão. Aprendi com ela a comer banana dessa forma.

Em certa época da vida, provavelmente por influência de propagandas que propalavam os benefícios dessa fruta cítrica, chupávamos laranja depois das refeições. Sempre. Acabado o almoço, lá ia minha mãe pegar uma peneira (lembra delas?), encher de laranjas e descascá-las para ela, para mim e minhas duas irmãs. Terminado o jantar... lá ia minha mãe... Um pouco maior, aprendi a descascar minhas próprias laranjas... sem janelas.

Lá pelos meus 9, 10 anos, no quintal da casa que alugávamos havia uma goiabeira. Ah, a goiabeira! Na época de fruta, todo dia, logo que chegava da aula, subia na goiabeira e disputava com os passarinhos os melhores frutos. Por um período, dois primos que moravam no sítio ficaram em casa para estudar. E a goiabeira tornou-se o abrigo ideal para as caverninhas que gostavam de fazer. Feita, o que esperávamos? A primeira chuva, para ver se era boa mesmo. Sempre saíamos molhados.

Meu contato com o morango foi indireto, por meio de iogurtes. Estes eram uma novidade. Conhecia coalhada, mas o iogurte era diferente – e com sabor. O que eu mais gostava era de morango. Foi uma época em que começávamos a consumir produtos industrializados e a acostumar com seus sabores. Ao morango, fruta, fui apresentado posteriormente.

Pequenino ainda, ao ir com minha mãe à feira aos domingos, a fruta que mais desejava que ela comprasse era melancia. Minha fruta preferida. Até hoje, não posso ver melancia e ficar sem experimentar. É uma paixão irresistível. Quem teve uma experiência com melancias foi minha esposa Claudia, quando estava grávida de nosso filho Timóteo. Primeira gravidez, transcorreu sem problemas e sem maiores desejos. Mas ao ouvir o vendedor na rua anunciando melancias, ela desejou comer melancia! E comeu. E comeu! Não consegui acompanhá-la. Dava gosto vê-la comendo melancia. Resultado? Passado o desejo, não podia mais ver melancia.

As frutas. Além de todas as suas propriedades, elas exercem a grata função de despertar minhas memórias. Doces, como as frutas, memórias.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Os reis e o livro

Como todo bom administrador, o rei estava preocupado com a deterioração no complexo de prédios do Templo. Por isso, providenciou que os reparos necessários fossem efetuados. Para arcar com os custos, enviou um de seus subordinados para recolher o dinheiro que se encontrava com o sumo sacerdote, fruto de ofertas do povo.

Qual não foi sua surpresa quando, além do dinheiro, o enviado trouxe o recado do sumo sacerdote afirmando ter descoberto o livro da Lei – provavelmente o livro ou o núcleo do livro bíblico do Deuteronômio.

Ao tomar conhecimento de seu conteúdo, o rei reconheceu que estava equivocado em sua administração, e que alterações deveriam ser realizadas. Reuniu o povo, leu o livro diante de todos e renovou o compromisso, seu e de seu povo, com Deus. Como consequência concreta da leitura, retirou do Templo os objetos de adoração a outros deuses e destruiu seus altares. Por fim, celebrou a Páscoa, reconhecendo que somente Deus pode libertar o ser humano.


O rei ouvia a leitura do rolo escrito por Jeremias com as palavras que Deus lhe havia falado. Anteriormente fora lido ao povo pelo servo do profeta, visto que este estava preso. A mensagem exortava o povo a abandonar seus maus caminhos e voltar a Deus. As autoridades reais, ao verem o alvoroço, chamaram o homem e tomaram conhecimento do conteúdo do livro. Ao ouvirem, ficaram assustados e decidiram levar o livro ao rei.

Antes do término da leitura, o rei tomou em suas mãos o rolo e, com uma faca, retalhou e jogou ao fogo o livro. O rei não apenas desprezou seu conteúdo como fez pouco caso dele.

Dois reis, duas atitudes diante do livro.

A primeira história, do rei Josias, está registrada no livro de Segundo Reis, capítulos 22 e 23. A segunda, sobre o rei Jeoaquim, está no capítulo 36 do livro do profeta Jeremias.

O primeiro rei reconheceu que sua administração continha princípios e ações equivocadas, de acordo com o livro lido. O segundo, embora igualmente exercesse uma administração condenável, conforme revelado pelo oráculo divino, manteve-se inalterável, não reavaliando sua gestão.

Entretanto, ambos foram atingidos pela mensagem dos livros. Ambos perturbaram-se com o que leram. Apenas a resposta à leitura foi distinta.

Tzvetan Todorov escreveu um livro intitulado A literatura em perigo. Argumenta que a literatura é frágil e que seu ensino, de modo geral, tem sido feito de modo equivocado, mas que, no entanto, ela continua cativando o ser humano.

Ao ler as duas histórias bíblicas, sem necessariamente discordar de Todorov, sou levado a pensar no oposto, em “o perigo da literatura”. A literatura tem um poder que se expande a partir da leitura. Pode ser para o bem ou para o mal, como as histórias dos dois reais mostram, mas, de qualquer forma, a literatura atua sobre nós.

Onde reside seu perigo? Em mostrar nossas fragilidades, nossos equívocos, nossa humanidade. Não quero dizer que a literatura deve ser instrumentalizada, tornar-se uma ponte para elaborações morais. Não. Mas que em sua simplicidade e complexidade, simpatia e rudeza, beleza e feiura, ela se coloca como um espelho diante de nós. E, ao fazê-lo, nos desarma e toma conta de nossa mente e coração. Esse é o perigo da literatura. Algo de que precisamos, de que somos carentes, que nos deslumbra e assusta, mas de quem não conseguimos nos desligar.

Sim, o perigo da literatura, a menos que sejamos o segundo rei...

domingo, 29 de setembro de 2013

Tubaína

É o refrigerante de todos nós. Ou de quase todos.

Turbaína (que teria sido o primeiro nome a ser registrado, em Jundiaí, SP, nos anos 1930), Etubaína (ou seria ela, segundo alguns, a primeira de fato, fabricada em Piracicaba a partir de 1913?) Tubaína, Taubaína, Itubaína, Tuiubaína, Tatuína, TubaGut... são muitos os nomes. Tem até Timãobaína!

Como tubaína define o gênero da bebida, há outras que são tubaínas, mas que recebem títulos como Simba, Cotuba, Gengi-birra, Cajaína, Tupinambá etc.

Atribui-se a italianos radicados no interior de São Paulo a sua criação. E elas reinaram (ainda reinam?) não apenas no interior de São Paulo, mas em todo o Brasil. O mais importante, entretanto, não é a origem, o sabor – tutti-frutti – muito doce para alguns, nem o preço, em geral vinte por cento mais barato do que os refrigerantes mais famosos, mas as lembranças que ela traz.

A tubaína vinha em garrafas de vidro como as de cerveja. Em geral os refrigerantes mais famosos ficavam fora de nossas mesas no interior. Talvez por ainda não serem distribuídos nesses rincões, talvez por terem um sabor ainda estranho ao nosso paladar. Mas, certamente, por não terem condições de rivalizar com nossa querida e onipresente tubaína. Afinal, a tubaína tinha a nossa cara! Era uma questão cultural!

Assisti a uma reportagem na qual a proprietária de um bar, cujo nome é “Tubaína”, relatava que um cliente, ao tomar a tubaína, não aguentou, desfez-se em lágrimas. Certamente tomado por recordações de um passado feliz.

Essa é a mágica da tubaína. Ah, as lembranças!

Quem não participou de um almoço de domingo, com macarronada e frango, acompanhado por quem? Ela, a tubaína! Quem não participou de um aniversário com a dupla: bolo e... tubaína! O que a garotada, depois de uma partida de futebol no campinho do bairro, pedia no balcão do armazém da esquina? Tubaína! Quem não comeu aquele sanduba de mortadela, regado a quê? Ela! A tubaína!

Além do mais, a tubaína não se fez presente apenas nos momentos informais de nossas vidas. Não senhor! Até em cerimônias com a presença de autoridades, fossem nos clubes, nas escolas, na câmara dos vereadores, na prefeitura – lá estava ela! A tubaína!

É... o que um copo (e sempre aquele copinho americano!) de tubaína faz por alguém. Fez nossa alegria na infância e adolescência. Faz, agora, agindo magicamente em nossa memória, trazendo lembranças guardadas em cantos da mente raramente visitados.

Por isso tudo, decidi colecionar tubaínas!

Por favor, me ajudem a resgatar meu passado!

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Autoconfiança é tudo!

Ao ver o mágico fazer desaparecer simplesmente um helicóptero do meio picadeiro, João Guilherme afirmou à irmã: – eu sei como ele fez!

O circo já estava há um bom tempo em Campinas e, depois de muitos adiamentos, não era mais possível esperar. Ou ele iria naquela tarde ou nunca mais. Então eu e Claudia pedimos que Melina, a irmã mais velha, levasse João Guilherme ao circo.

Quando passamos para pegá-los ao término da sessão e perguntamos se gostaram, como foi etc., o comentário de Melina foi que o circo é tudo aquilo que disseram, que é muito bom mesmo e que valeu a pena. João Guilherme apenas disse que gostou.

Então Melina entregou o irmão. Disse que o mágico era muito bom, e que o ponto alto de sua apresentação foi o desaparecimento, em pleno picadeiro, de um helicóptero. E que, diante do assombro geral, ouviu a voz do irmão dizendo: – eu sei como ele fez! – eu sei como ele fez! – Sem noção o João Guilherme... concluiu Melina.

Ingenuidade, inocência, infância, entre outras coisas? Provavelmente, mas, talvez nesse momento, do alto dos seus oito anos de idade, um certo tipo de autoconfiança diante do mundo. Uma certeza de que tudo possui explicação, e que, se o helicóptero sumiu, isso deve ter uma razão.

Embora João Guilherme não tivesse a mínima ideia de como isso aconteceu, sua inocência e desejo de impressionar a irmã o levaram a declarar seu conhecimento das artes mágicas!

Por vezes agimos do mesmo modo. Bem, não tão do mesmo modo. Podemos parecer, querer ser autoconfiantes, mas por razões diversas. Nunca a brincadeira límpida e amigável entre irmãos. Talvez queiramos impressionar o chefe ou o outro sexo, pode ser uma estratégia de marketing pessoal, ou mesmo um ego inflamado a ponto de explodir.

E aquilo que nas crianças é visto como algo divertido, sem consequências, entre nós, grandões, pode ser sintoma de doença da mente, do coração, da alma. Obviamente o antídoto não é uma autoestima baixa, um complexo de ser “o menor de todos”. Mas certamente a consciência de que, apesar dos nossos esforços, de nossas habilidades e conhecimentos, dificilmente poderemos dizer a todo instante: – eu sei como ele fez!

Um sentimento de pertença à humanidade, de desejar compartilhar e aprender com outros, de encontrar beleza e sabedoria não apenas em nós mesmos, mas nos que nos rodeiam, pode ser uma boa postura diante do mundo. E, somado a isso, assumir o maior desafio, que não é dizer: – eu sei como ele fez! Mas alegrar-se com a possibilidade de que outros não apenas digam isso, mas, de fato, saibam como fazer.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Campinho

Muito provavelmente aqueles com menos de 40 anos não saberão do que se trata. E, ao tomar conhecimento, acharão estranho, sem atrativos, uma perda de tempo.

Talvez tenham uma vaga ideia por intermédio dos quadrinhos do Cebolinha e do Chico Bento em que eles aparecem em algumas histórias jogando bola com outras crianças.

Mas para aqueles que, como eu, passaram parte da infância em um campinho de terra, ah, é uma recordação e tanto!
Até a década de 1970 ou um pouco mais, principalmente no interior do país, havia um considerável número de terrenos baldios que ainda não tinha sido alvo da especulação imobiliária. Eram de tal forma disseminados que em um único bairro poderia haver vários terrenos à espera de serem promovidos a campo de futebol. O que eu frequentava estava a três quarteirões de outro, com outra turma rival. Sim, um dos pontos altos dos campinhos é que as turmas eram rivais.

As crianças que moravam nos quarteirões próximos rapidamente se agrupavam em torno dessa terra de ninguém constituindo-a em sua possessão. A garotada toda era convocada, e em mutirão limpavam minimamente o terreno, construíam as traves e delimitavam as linhas do campo com cal. E se dessem o azar de ninguém ter uma bola de capotão, faziam uma vaquinha para comprá-la. Tudo pronto para o espetáculo!

O meu campinho de infância, na realidade, havia sido um campo com dimensões quase oficiais anteriormente. Isso foi em um tempo em que eu não morava no bairro. Quando cheguei, o Centro de Saúde já havia sido construído e roubara metade do terreno. Sobrou o campinho, no qual jogávamos futebol em times com seis ou sete jogadores.
Entre os frequentadores do campinho havia uma gradação de idades e, consequentemente, de importância. Os mais velhos mandavam nos mais novos. Havia times oficiais. No nosso caso, depois de muita discussão, os mais velhos resolveram batizar o time de Juventus. Cada um contribuiu com uma camiseta nova ou usada que, devidamente tingida de vermelho por uma das mães, tornou-se o uniforme do time.

Os mais velhos participavam do “primeirinho” (como era chamado o time principal), e os mais novos do “segundinho” (o time da molecada mais nova). Entre os mais velhos estavam o Marcão, o Zizo – que morara fora e por um tempo jogou em um time profissional do interior –, o Irineu, o Tuta, entre outros. Os mais novos eram o Tarzan (ironia – ele era magrinho!), o Gentil, o Faeco, o Namoro (o nome correto era Mamoro), o Betinho etc. E tinha os mais novos ainda, entre os quais eu me incluía, juntamente com o Serginho, o Zequinha, o Mário Pão, o Alaor.

Nosso campinho era poliesportivo! Claro, o esporte principal era o futebol. Mas praticávamos também os esportes de temporada. No outono, em função do vento, era tempo de empinar papagaio. Em outras épocas, bolinha de gude, peão, e algum outro esporte mais exótico.

Nas férias de verão, não nos satisfazíamos em ir para o campinho nas manhãs e tardes. Íamos também à noite. Naturalmente ele não era iluminado. Então, brincávamos em frente de mãe de rua. Mas mãe de rua de macho! O cara ou os caras que ficavam na rua podiam entrar na calçada para tentar arrastar a molecada para a rua. E aí, valia tudo: empurrões, tapas, rasteiras e tudo o mais. Brincávamos também de mãe de cinta (por que será que as brincadeiras sempre tinham o nome de “mãe”?). Alguém pensava no nome de um carro ou outra coisa e os demais tentavam adivinhar. Todos segurando a cinta. Quem adivinhasse tinha o direito de pegar a cinta e lascar no lombo do mais próximo, se conseguisse atingi-lo, é óbvio, uma vez que, descoberto o nome, a turma toda saía em disparada.

Mas a brincadeira que dava mais ibope era polícia e ladrão. O pessoal era dividido em dois grupos, sendo que os policiais tinham que descobrir onde se escondiam os ladrões e tentar arrastá-los para um lugar definido como cadeia. E, mais uma vez, tapas, empurrões, rasteiras, às vezes um soco ou outro.

Depois de vários anos de convivência, amizades, brincadeiras, muitas brincadeiras!, mudei-me das redondezas. Fui morar perto de outro campinho que uns primos frequentavam. Mas não era o mesmo. Não era o meu pessoal.

Nunca mais tive um campinho. Eles praticamente não existem mais. Mas se deixei o campinho e não consegui mais voltar, ele não me deixou. Quando passo hoje pelo ginásio de esportes onde existira o campinho, meu coração fica apertado e encolhe.

Hoje, daria tudo para ver as fotos que alguns amigos tiraram no campinho décadas atrás. Ver as carinhas das crianças, ver as roupas sujas de terra, ver o Alaor jogando bola de botina, o Marcão usando bamba, o Betinho correndo atrás da bola de calça comprida; ver como aquele pedaço de terra largado, com mato, um chão todo irregular, com traves tortas, era, não obstante, o melhor lugar do mundo!

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Sons da noite

Deitado, esperando o sono que teima em não chegar, ouço sons. Não são os sons que nos assustam à noite. Latido de cachorros, sensação de ouvir passos na garagem, portas que gemem movidas por correntes de ar furtivas.

Sons que durante o dia não se ouve, abafados pela competição com outros criados pela atividade frenética do ser humano. Dentre tudo quanto a humanidade tem produzido, reinam soberanos os ruídos que testemunham o caráter ambíguo do desenvolvimento da humanidade.

Os sons que ouço se escondem do sol, tímidos e medrosos que são. Temem, acima de tudo, serem abafados por seus concorrentes mais fortes e poderosos, acabando por se diluírem no espaço. Por isso mesmo, esperam a noite. Aguardam as estrelas para sentirem-se à vontade para saírem pelas praças e ruas e para invadirem as residências, onde sempre encontram pessoas, como eu, que os recebem como amigos antigos.

Sons que recordam minha infância quando, em outro lugar e outro tempo, já os ouvia. Sons amigos, que nos momentos de descanso não quebram o silêncio instaurado pela lua, mas chegam mansamente, como uma trilha sonora, produzindo uma música de fundo para as recordações. Não, não são recordações. É o passado que se manifesta tão concreto, invadindo o presente, que me vejo criança novamente. E como isso é bom!

São dois os sons que ligam minha infância com este momento.

Sons de carros em rodovias, que percorrem quilômetros na liberdade da noite alta, e atingem meus ouvidos. Quem estará viajando nesse momento? Um caminhoneiro desejando ganhar tempo com as estradas vazias, tendo como companhia a solidão e a saudade de seus queridos que nesse momento dormem? Ou o viajante em busca de aventuras, dirigindo sem destino? Ou os recém-casados procurando o próximo hotel onde desfrutarão de uma noite repleta de amores? Diante da vida pacata e fixa de minha infância, a imaginação se enchia de prazer em visualizar essas pessoas soltas pelas estradas.

Sons do trem, trazendo o atrito de ferro com ferro e os apitos que marcam seu trajeto. Em algumas noites da infância e de agora, noites calmas, em que o vento sopra trazendo sons distantes, viajei e viajo com o trem imaginário e ao mesmo tempo real. O apito longínquo se une à lembrança da música “Encontros e despedidas” de Milton Nascimento. “O trem que chega/ é o mesmo trem da partida.../ A hora do encontro/ É também, despedida”. Na infância, o desejo e, ao mesmo tempo, o temor da partida. Agora, a certeza da necessidade das partidas e a alegria das chegadas já chegadas.

Em lugar de pensar nos viajantes que correm pelas estradas, penso em mim mesmo. No trem que me leva, nas chegadas e partidas, nas pessoas que encontro, nas que deixo. A marca da despedida sempre presente nos encontros. A expectativa de que as saídas sejam sempre suplantadas por novas chegadas e novos encontros.

Penso e reflito. Mas isso só é possível à noite, com seus sons.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Cocker Spaniel

Quando os filhos eram pequenos, com certa frequência visitávamos os pais de uma amiga nossa. Gostávamos de estar com eles. Conversa agradável, doces e refrigerantes para as crianças. Passávamos bons momentos com aquelas pessoas que falavam de histórias do passado e do presente.

Em geral, logo depois de uma conversa inicial na sala éramos convidados à cozinha. Ali a conversa corria mais animada. Ele, um senhor articulado, com boas ideias; ela, professora, dos tempos antigos, sempre bem vestida, português irretocável.

Lembro-me que a mesa da cozinha ficava em frente a uma janela. E nela, tão logo entrávamos, surgia a enorme cabeça de um cachorro. Não me lembro a raça, mas ele era grande, muito grande. E dócil, manso. Obviamente as crianças adoravam ver o cachorrão. Afinal, também tínhamos cachorro em casa. Para tristeza delas, logo ele era colocado nos fundos do quintal e ali ficava.

Em uma das visitas, quando a cena se repetiu, logo depois do cachorro ser enviado para seu canil, a senhora, de forma gentil, puxou conversa com Melina, que deveria ter por volta de três ou quatro anos. Perguntou se ela tinha cachorro. A resposta foi positiva. Continuando a conversa, perguntou pela raça: a resposta, de pronto: – “Coki pênis”. – Como?, perguntou a desconcertada senhora. E novamente, e de forma convicta: “Coki pênis!!!”

A senhora ficou atônita, sem reação. Todos nós, que estávamos próximos e ouvíamos a conversa, igualmente fomos tomados de surpresa. A primeira pessoa a reagir foi a filha, a nossa amiga, que tratou logo de corrigir o equívoco dissolvendo as dúvidas e possíveis julgamentos a respeito da iniciação precoce de Melina no mundo da sexualidade.

- É Cocker spaniel, mãe! Cocker SPANIEL!!!

Um longo suspiro, seguido de uma respiração profunda, como que retomando o fôlego, e a senhora, que por alguns segundos perdeu a postura sempre elegante, se recompôs.

Ela deu um pequeno sorriso e, com classe, mudou de assunto. Todos ficamos aliviados e rapidamente engatamos na nova conversa.

A partir daquele dia Melina ficou famosa no mundo canino por identificar uma nova linhagem da raça Cocker.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Raiza

Lygia Fagundes Telles gosta de gatos. Ela inicia o livro A disciplina do amor com três crônicas dedicadas a eles.

Eu prefiro os cães.

Cresci tendo-os ao meu lado. Meu pai criava cães desde moço, preferencialmente pastores alemães. Vi e convivi com várias ninhadas desses maravilhosos animais. Mas também tive a companhia de pincheres, collies, foxes e, claro, vira-latas.

Um cachorro em particular marcou minha vida. Já estava casado e com filhos quando ela chegou. Uma bolinha de pelos cor caramelo. Era uma cocker spaniel. Ficamos imediatamente apaixonados por ela. Demos-lhe o nome de Raiza, o que nos trouxe alguns constrangimentos posteriores com seres humanos homônimos.

As crianças, pequenas, tratavam Raiza como uma boneca ou como um amiguinho, dependendo dos braços que a carregavam. Eu e Claudia a recebemos como um novo membro da família. Como acontece com os cães, ela também se afeiçoou a nós. Passamos a ser sua família.
Raiza cresceu e tornou-se uma jovem bela e inteligente. Seguindo seu instinto caçador, quando a soltávamos no grande quintal da casa em que vivíamos na época, ela corria, farejava os cantos e latia em busca de presas inexistentes. Depois, cansada, retornava até nós cheia de satisfação.

Quando Claudia ficou grávida de Joao Guilherme, Raiza era o membro da família que mais a paparicava. Ficava ao lado de Claudia o tempo todo, como a protegê-la. Algum tempo depois, era João Guilherme que brincava com Raiza e se divertia levando-a para passear.

Tentamos cruzá-la várias vezes. Mas Raiza nunca aceitou o companheiro. Ficamos tristes, mas, ao mesmo tempo, intimamente contentes, pois o veterinário nos explicou, talvez com certo exagero, que ela era tão apegada a nós que não aceitava os machos.
Raiza era muito brava. Latia para a própria sombra e para qualquer ruído. Os latidos só diminuíram com a chegada da surdez.

O tempo passou e Raiza nos acompanhou. Mudamos de casa, de cidade, e ela conosco. Ela viu nossos filhos crescerem. E envelheceu.
A idade trouxe problemas de saúde. Sofreu com vários tumores. Quase morreu com um deles. Fez uma cirurgia de risco e ficou dias hospitalizada. Foi emocionante quando a visitamos logo depois da operação. Com uma costura enorme na barriga, trêmula e com dores, ao nos ver levantou-se com grande esforço, mas com uma expressão de extrema alegria. Éramos as pessoas a quem ela amava e deseja ter ao seu lado. Saímos dali com olhos embaçados de lágrimas de alegria por vê-la bem e de emoção por presenciarmos cena aquela cena de amor explícito.

Algum tempo depois, ela sofreu um derrame e passou a caminhar com dificuldade. Mas bastava ver um de nós para sair da casinha ou do canto onde costuma ficar e caminhar vagarosamente para ficar ao nosso lado.

Nova mudança, agora para um apartamento. E com muita tristeza tivemos que deixar Raiza com Cacau, irmão da Claudia, em outra cidade. Nós a visitávamos com certa regularidade, momentos de alegria para todos. Ela estava velhinha. Mas nunca deixava de expressar alegria ao nos ver.

Enfim, chegou a notícia que temíamos. Ficou muito doente, sem possibilidade de melhora. A sugestão do veterinário: sacrificá-la para aliviar o sofrimento. Alívio para ela, aumento de sofrimento para nós. A sensação era de estarmos traindo o amor de Raiza. Mas, racionalmente, sabíamos que era o certo a ser feito.

Não tivemos coragem de nos despedir. Isso ainda dói em nossos corações quando lembramos dela.

A lembrança sempre presente de Raiza confirma o amor que nutríamos por ela. Afinal, nós, seres humanos, guardamos na memória e no coração pessoas que foram especiais para nós.

E Raiza foi.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Imagem surreal

Sete e meia da manhã de um dia frio, eu passava em frente à Santa Casa de São Paulo em direção ao trabalho. Aglomerado de prédios históricos, de tijolo à vista, com belos jardins, a Santa Casa compõe um complexo com uma bela paisagem em meio aos prédios de concreto.

No entorno do hospital as pessoas caminham apressadas, aquelas que podem, pois sempre há idosos e doentes. Estes chegam lentos, muitas vezes à pé, despejados dos ônibus e do metrô, por vezes cambaleantes em busca de auxílio, e, igualmente lentos, saem do hospital com expectativa de melhora.

Em meio à agitação, enquanto caminhava pela longa calçada em frente a Santa Casa, notei papelões espalhados rente ao muro. Era uma fileira de caixas de papelão abertas e estendidas pelo chão. É provável que elas tenham sido usadas originalmente para guardar e agasalhar pacotes de feijão, de arroz, quem sabe produtos de limpeza, eletrodomésticos. Mas agora elas guardam e agasalham pessoas.
Elas estão deitadas sobre os papelões e enroladas em cobertores sujos, malcheirosos, em farrapos. São várias. Infelizmente esse quadro não era novidade para mim. Em muitos lugares de São Paulo, as noites e manhãs apresentam esse cenário: pessoas que se preparam para dormir, pessoas que dormem, pessoas que acordam. Todas nas ruas, se ajeitando como podem.

Mas nessa manhã a situação era diferente. Não eram apenas pessoas. Eram jovens e crianças. Deitados enfileirados, lembravam a casa de nossos avós quando os netos se reuniam, e na hora de dormir era aquela festa, a criançada toda dormindo junta. Aqui, entretanto, não havia festa. Havia crianças dormindo lado a lado, mas não havia alegria. Afinal, a vó, que certamente nunca conheceram, não estava ali para preparar o leite para que tomassem antes de dormir, e a mãe, que talvez tenha abandonado alguns deles, não entraria no quarto fictício para acordá-las com um beijo pela manhã.

Havia a realidade nua e crua. Jovens e crianças abandonadas ao próprio destino que se unem, possivelmente para se protegerem mutuamente, mas também para ingerir drogas, roubar, esperar o tempo passar e tentar viver mais um dia.

Em meio a essa série de imagens e pensamentos que vinham à minha mente, meus olhos pararam em um corpo que estava no meio dos demais. Na realidade era um corpinho. Com uma cabecinha com cabelos loiros encaracolados. Enquanto os outros tentavam esticar o sono um pouco mais, ela, acho que era uma menina, já estava acordada e parada. Parece que pensava na vida. Não teria mais de oito anos. Idade de meu filho caçula. O que uma criança, nessa situação, poderia pensar?

Refleti. O que são essas crianças que enfrentam a crueldade de uma sociedade que simplesmente virou as costas para elas? O que pensam sobre os adultos que passam indiferentes por elas? O que esperam da vida? O que sonham, se é que sonham?

Roland Barthes, um teórico da literatura, tinha um conceito que intitulou de “efeito de real”. Para ele, em determinados textos literários, alguns elementos do cenário exercem uma única função – a de transmitir para o leitor a sensação de que aquilo que se apresenta tem identidade com a realidade. A descrição de um armário em um quarto, de um quadro em uma sala, de uma rosa no campo.

Talvez essa menininha, que poderia ser minha filha, exerça, para nossa sociedade, a simples e única função de efeito de real. Ela faz parte do cenário urbano no qual todos nós transitamos. Na verdade, ela nem é humana, real. É um elemento estético que aponta para outra realidade. A realidade de uma sociedade embrutecida, que se acostuma com as barbaridades que sofre e pratica diariamente. Uma sociedade que contempla, como faz com o cenário de um filme ou uma pintura, crianças dormindo na calçada em um manhã fria, podendo, no máximo, julgar que a cena é inconveniente.

Efeito de real. É isso que as mazelas de nossa sociedade são para nós. Damo-nos o direito de nos ausentarmos da discussão e transformação desse quadro. Na prática, os problemas sociais não são reais para nós. Como a menininha de cabelos loiros encaracolados, dormindo na calça de uma São Paulo indiferente. Uma imagem que se fixou em minha retina.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

As partes

Italo Calvino, escritor italiano já falecido de quem gosto muito, escreveu entre tantos livros uma espécie de trilogia: O visconde partido ao meio, O barão nas árvores, O cavaleiro inexistente. Diverti-me muito lendo-os anos atrás. Texto ágil, narrativa cativante, humor fino. Ficção humanizada. Em todos.

Os três livros, cada um a seu modo, tematizam as incompletudes do ser humano. O visconde é partido em dois em uma batalha. Cada parte em diametral oposição à outra. O barão, frente a uma crise familiar, sobe nas árvores dando as costas aos que embaixo ficam. E de lá nunca mais desce, passando a ter outra visão do mundo e outro tipo de envolvimento com a sociedade. Já o cavaleiro... bem, é o livro que mais aprecio. O cavaleiro não existe fisicamente. Ele é reconhecido apenas pela voz que soa misteriosamente de dentro da armadura vazia. Além de tudo, sua existência se efetiva pelo exercício da razão. Ela é sua fonte de identidade. É a razão que governa suas ações e sua quase incapacidade de amar. Ao amar... não, não contarei o fim da história.

Os livros são de um período em que Calvino se fascinava pelo ser humano. Depois de algum tempo deixou de fazê-lo. A tal ponto que alguns, talvez maldosamente, atribuíram a ele a alcunha de misantropo. Pena.

Entre risos despertados pelas trapalhadas de seus protagonistas, os livros permitem uma reflexão. Somos parte. Parte que se encontra em crise com as diversas partes do ser, parte que encontra contrapartes em oposição, parte que simplesmente nega as demais partes e busca outra maneira de existir no mundo, parte que tem sua existência negada, mas que reafirma seu direito, mesmo que de parte, de existir, parte que carece de completude, parte, sempre parte.

Antes que eu e você sejamos tomados de autocompaixão, lembremos que Calvino trata desse assunto de forma irônica, cômica. Isso me faz lembrar uma frase: “A capacidade de rir de si mesmo nos aproxima do divino”. É, acho que é verdade. E Calvino também concordaria. Afinal, nada mais chato do que viver julgando-se uma totalidade, um todo. Nada mais chato do que os todos que estão por aí. Todo cheio de si, todo arrogante, todo autossuficiente, todo sábio, todo bonito, todo tudo. São insuportáveis esses todos!

Fico com as partes de Calvino. No mínimo, elas despertam simpatia. E, no final, as partes estão sempre e incorrigivelmente em busca de outras partes. E partes podem se encontrar na brincadeira de crianças, no coleguismo de adolescentes, na amizade de trabalho, na partilha de ideologias e de crenças, no amor de coração e de carne, na companhia entre velhinhos.

Sim, as partes são mais fascinantes.

domingo, 26 de maio de 2013

Amor

Desde o modo – desculpem-me os românticos – piegas de chamar o (a) amado (a): “Amoooor...”, até as versões gregas do amor (eros – sexual; fileo – de amigos; ágape – sacrificial, verdadeiro), o amor tem variações. E como!

O amor está circunscrito aos relacionamentos humanos, embora sempre exista alguém que declare: – Como amo meu cachorro, gato, papagaio, iguana, porquinho da Índia, peixinho etc., etc.!

Mesmo sendo uma característica do relacionamento entre pessoas, como a palavra apresenta variações de sentido! Pense em uma criança. Todos riem, se emocionam até, quando uma delas declara para a mamãe ou para a vovó: – te amo! Mas, sejamos sinceros, o pequerrucho está apenas repetindo aquilo que aprendeu com os seres que afirma amar. Quando ele repete a palavra, e recebe em troca sorrisos e agrados, continuará agindo dessa forma, mesmo sem entender.

Agora, vejamos o exemplo dos adolescentes e jovens. Embora tenham abolido os relacionamentos sérios (pelo menos muitos deles), definidos pelos antigos como namoro, em troca de experiências rápidas de envolvimento físico, definidas tecnicamente como “ficar”, não nos enganemos. O amor está presente. E muito! Em um cantinho escuro, ou no carro, o rapaz declara: – Te amo! E os beijos aumentam de intensidade, e as mãos ficam inquietas. Ou então, de modo pragmático ele propõe – Vamos fazer amor? (embora em muitos casos o termo mais usado seja mesmo “transar”).

Já o adulto utiliza mais seletivamente a palavra. Na comemoração de aniversário do (a) esposo (a) ela estará presente. Em um dia em que tudo deu certo no trabalho, o maridão chegará em casa e, surpresa, lançará repentinamente em direção da mulher a declaração: – Te amo! Mas desconfio que nesse caso a amada servirá apenas como um espelho que revelará um espírito egocêntrico em um momento de autossatisfação. Ou então, após um jantar especial, feito por ela ou pago por ele, a palavra amor surgirá fácil em meio a outros elogios.

Bem, e os velhinhos? Os casais de cabecinhas brancas também declaram amor uns aos outros. Mas, para ser sincero, se não utilizarem a palavra, não fará muito diferença. O fato de estarem convivendo lado a lado, durante décadas, a experiência concreta dos votos “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza”, demonstra de modo inquestionável que o amor existe e é real em suas vidas.

E a última expressão do amor, vertida em frase por vezes proferida diante da sepultura do amado? Qual seu sentido? Obviamente não visará recompensa. Não buscará a concretização de algo. Excetuando o fato de poder ser uma forma de justificativa esfarrapada diante dos presentes, que procura demonstrar um amor que de fato nunca existiu, o uso da palavra será uma declaração dolorida de si para si mesmo a respeito da falta que ela (e) fará. – Eu te amo! significará, na verdade: – Sentirei sua falta! Falta de quê? De que amor? Do amor infantil, do amor adolescente, do amor maduro, do amor que une até o fim da vida.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Festa

Era uma daquelas viagens em que todos estavam descontraídos, alegres. Saíamos de férias. Eu, Claudia, e os filhos Timóteo e Melina, ainda pequenos.

Carro cheio de malas, bolachas, água, balas e sei lá mais o quê (sempre há mais alguma coisa em carro com crianças). Depois de um semestre de aulas cansativas, pelos menos era o que as crianças achavam, e de trabalho duro para os adultos, viajávamos em busca do merecido descanso.

Para distrair Timóteo e Melina, Claudia liderava as conversas, as músicas, tanto as conhecidas como aquelas que tentava ensinar, e, em certo momento, propôs que lembrássemos de textos da Bíblia. Pela leitura frequente, certas passagens vão sendo memorizadas. Além disso, as crianças aprendiam dominicalmente histórias bíblicas na igreja.

E lá fomos nós. Cláudia recitava o início de um texto e as crianças tentavam completar.

– “Deus é...
–... amor”.
– “Lâmpada para meus pés é a tua palavra...
–... e luz para o meu caminho”.
– “Jesus...
– ... chorou” (sim, esse é um versículo da Bíblia).
– “Vós sois...
– ... o sal da terra”.

Depois de algum tempo, Claudia sugeriu uma variação. – Vamos recitar o salmo 23, cada um uma parte.
Como é um dos salmos mais conhecidos da Bíblia, não seria difícil seguirmos de cabo a rabo pelo salmo.

Começamos.

- “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará” – Claudia.
- “Ele me faz repousar em pastos verdejantes” – Eu.
- “Leva-me para junto de águas de descanso; refrigera-me a alma – Timóteo.
- “Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome” – Melina.

As coisas iam razoavelmente bem. Claro, por vezes tínhamos que ajudar com uma palavra, uma expressão, mas as crianças estavam dando conta.

Mais à frente havia um fragmento de maior complexidade pela linguagem e extensão. O texto diz: “Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários ...”.

Coube à Melina, a mais nova dos irmãos, esse trecho. Senhora de si, sem hesitar, recitou o texto com voz confiante:
– “Preparas-me uma mesa no dia do meu aniversário!”.

- Hã...?! – Como é que é? “... no dia do meu aniversário???”. Dissemos quase a uma só voz.

Nada de mesa diante de adversários, que não faz nenhum sentido para uma criança. O que faz sentido, em uma viagem de férias, é alegria, diversão... festa. Portanto, nada melhor do que Deus tomar sobre si a responsabilidade de não deixar passar em branco o aniversário da Melina. Para ela, a festa estava garantida. “Preparas-me uma mesa no dia do meu aniversário!”. Bem, depois dessa, risos, risos e mais risos.





segunda-feira, 20 de maio de 2013

Ressurreição. A que horas?

Domingo à noite, final do culto na igreja protestante do interior. Após o canto do último hino e da oração de encerramento, antes de sairmos, o pastor passa aos avisos.

Pessoa séria, com ares solenes próprios da liturgia que seguiu obedientemente, o pastor informa a igreja sobre as atividades da próxima semana. Terça-feira: culto das mulheres na casa da irmã fulana; quarta: reunião dos homens no templo; sábado: encontro dos adolescentes à tarde e dos jovens à noite, e assim por diante.

O último e mais importante aviso diz respeito a uma atividade especial que acontecerá no próximo domingo, domingo de páscoa. Seguindo a tradição das igrejas protestantes, haverá um culto de páscoa, momento em que a igreja celebra a ressurreição de Jesus Cristo. Há uma liturgia especial com hinos cantados pelo coral e pela comunidade, orações e pregação do pastor, todos voltados para o tema da ressurreição.

Eis o pastor, então, em seu último aviso: – Irmãos, domingo que vem haverá o culto da ressurreição!, diz ele, com voz clara e forte. – Todos estão convidados! – Convidem amigos! Tragam familiares! – Depois do culto haverá um café da manhã.

Nós, os jovens, ouvíamos o aviso com certa distração, já pensando no encerramento do culto, quando iríamos para o salão nos fundos da igreja tomar refrigerante, comer bolacha e, principalmente, conversar, dar risadas, ter momentos de descontração. Os adultos, inquietos, preparavam-se para ir embora, certamente pensando no final da noite fria e nas partes do Fantástico que ainda conseguiriam assistir.

Para encerrar, o pastor informa triunfalmente: – O culto será às 6 horas da manhã!

– FIUUUUUUUUUU... CEDO, HEIN?! O aviso foi seguido, de imediato, por um longo assobio e pela expressão curta e assertiva.

Ficamos todos espantados. Uma onda ininterrupta de cabeças virava e revirava em busca do autor da manifestação totalmente estranha que, de forma tão abrupta, quebrara a solenidade do final do serviço religioso. Por fim localizamos, assentado em um dos últimos bancos do templo, o responsável – um bêbado.

Ele ficara em silêncio durante todo o culto, passando mesmo despercebido. Mas agora, talvez já cansado por ter ficado sentado por mais de uma hora, não resistira a esse último exemplo de disciplina espartana por parte dos protestantes. Talvez pensasse: culto à noite, tudo bem, é um lugar quente para se acomodar em uma noite fria, bom até para tirar um cochilo. Mas culto às 6 horas da manhã? Aí não! Aí já é demais! “Cedo, hein?!”

Sua manifestação espontânea pegou a todos de surpresa. Depois de alguns segundos de suspense, gargalhada geral. Afinal, é bem provável que ele tenha expressado o que muitos ali pensavam naquele momento.

Tia Celita morreu. E agora...

Após o ofício fúnebre de tia Celita perguntaram-me por que eu não falei. O que estava subentendido é que, como pastor, deveria ter falado alguma coisa. Meio sem graça, disse que não gosto de falar nessas horas e, pensei comigo, vários pastores já haviam falado. Disse também que escreveria alguma coisa. Prefiro a escrita, afinal, em lugar da voz embargada que sempre teima em aparecer nesses momentos e o choro que fecha a garganta em um abraço sufocante impedindo a fala, a escrita permite-me refletir, pensar, e, mesmo emocionado, continuar escrevendo sem interrupções. Para isso os computadores são grandes amigos, pois não carregam os vestígios das lágrimas que buscam persistentemente as folhas de papel e depositam nelas as marcas do coração.

Conheci tia Celita no final dos anos 1970 quando comecei a namorar Claudia. Ela, filhos e netos – no início poucos, depois muitos –, visitavam constantemente a casa da mãe, vó Mária, em Itapetininga. A chegada dos familiares era motivo de festa e encontro entre irmãs e hostes de primos e primas que expandiam sua alegria pela casa, vizinhança e praças da cidade.

Desde os primeiros contatos com tia Celita fiquei impressionado com o que ela me disse: “oro por você todos os dias”. Algum tempo depois fui estudar no seminário presbiteriano em Campinas e Celita, toda vez que me encontrava, continuava dizendo: “oro por você todos os dias. Pastores precisam de oração constante!”.

E assim se deu. Os anos foram passando, casei-me com Claudia, tive filhos. Tia Celita, por sua vez, viu sua vida ser enriquecida com o aumento constante da família. Nossas vidas mudaram. O que não mudou, quando nos víamos, era sua frase: “Oro por você todos os dias”.

Embora julgasse a oração de tia Celita importante, nunca me dei conta de seu real valor. Hoje, penso: de quantas situações fui livrado pela graça e poder de Deus por causa de suas intercessões? Quantas vezes fui fortalecido e recebi graça dobrada pelo fato dela se encontrar de joelhos apresentando a mim e minha família diante do trono de Deus? Quantas vezes o diabo e seus demônios, quando prestes a me tragar, foram colocados para correr por Deus e seus anjos como resposta às orações de tia Celita?

Tia Celita morreu. E agora...

Eu acredito na oração. Creio que Deus, em sua bondade e poder, responde aqueles que dele se aproximam. Tenho convicção de que não há maior meio de graça e de comunhão com Deus do que a oração. E estou certo de que a oração é a forma mais consistente pela qual mostramos amor aos irmãos e ao próximo.

Tia Celita morreu. E agora... quem vai orar por mim?

Sinto-me órfão de suas orações. Mais do que nunca, como nunca senti, vejo que preciso de orações.
Infelizmente a oração não está em moda. Desconfio que os cristãos contemporâneos desaprenderam a oração, impedindo que suas almas respirem e outras pessoas sejam abençoadas. Faltam pessoas como tia Celita. Faltam pessoas que simplesmente digam: oro por você todos os dias!

Outras pessoas oram por mim? Acho e espero que sim. Mas como tia Celita certamente não. Acho que serão necessárias dezenas de cristãos para ocupar o espaço de oração que tia Celita ocupava diante de Deus.
Tia Celita morreu. Desculpem-me filhos e filhas, genros, noras, netos, mas, egoisticamente, o que mais sentirei falta é de sua fala mansa me dizendo a todo encontro: “Oro por você todos os dias!”.

domingo, 19 de maio de 2013

O hobbit visitou-me no hospital!

1987, Joinville, SC. Alta madrugada, acordei com dores de estômago. Chá, repouso... e nada. Hospital. Por minha sugestão, o plantonista diagnosticou com certeza: intoxicação alimentar! Remédios e retorno para casa. Dali a algumas horas, novamente hospital. Novos remédios e descanso. Dores, e em seguida febre. No dia seguinte, na clínica particular, o médico diagnostica: infecção renal. Antibióticos, repouso, dores e febre persistentes. Com um ano de casados, depois de noites sem dormir diante de um quadro inalterado, Claudia liga para a mãe em Itapetininga, SP. Sarah se lembra do sobrinho urologista em São Paulo. Após algumas ligações, ele sugere a ida para São Paulo. Tempo de colocar poucas roupas nas malas, aeroporto, desembarque na capital paulista.

Dado nos aguardava. A intenção era levar-nos para sua casa. No trajeto, a partir da conversa e dos sintomas indicados, muda de direção e ruma direto para o Hospital Samaritano onde trabalhava. Após alguns exames, o veredito: apendicite, isto é, ex-apendicite, visto que já havia supurado. O quadro era de peritonite e de quase infecção generalizada. Restava abrir (o termo é esse mesmo!) o abdômen, lavar e esperar que o organismo se restabelecesse. Claro que Claudia precisou assinar um termo de responsabilidade devido à gravidade da cirurgia com pouca probabilidade de sucesso, segundo os médicos.

Fiquei cerca de duas semanas no hospital, sendo que por oito dias apenas no soro. Nem uma gotinha de água. Alimento, nem falar. Apenas soro! Foi nesse período que um amigo, Douglas Spurlock, visitou-me levando um livro. Disse-me que era de um autor britânico famoso por escritos que mesclavam elementos do folclore europeu, pesquisas linguísticas e mensagem cristã de fundo. Recebi O Hobbit com um misto de surpresa e curiosidade. Como não havia nada a fazer no hospital – nem levantar da cama podia –, devorei o livro. E a leitura foi simplesmente fantástica! Nunca havia lido nada igual.

Influenciado pela formação teológica que trata de argumentações, doutrinas, provas e raciocínios, ler aquela narrativa foi uma brisa renovadora para minha alma. Tenho que confessar que os elementos cristãos do livro não me fascinaram, pelo menos não nessa leitura – fiz pelo menos mais três. Mas a trama, as personagens, as aventuras, e o fato de seres tão diferentes como um mago, um pacato hobbit e anões temperamentais conviverem e se unirem em prol de um objetivo me fizeram refletir. Ademais, a inserção de orcs, fadas, dragão, elfos etc. me fascinaram mostrando como meu mundo de concretudes e seres insuportavelmente normais e previsíveis era tão carente das fantasias e tramas fantásticas que me propunham questões tão pertinentes e reais.

O contato com o livro me mostrou que é impossível viver sem imaginação. Que a ficção corre nas veias do ser humano. Que sem conhecê-la é praticamente impossível pensar o cristianismo e mesmo entender a Bíblia. Esse pequeno livro me fez ver que eu, como alguém que desejava trabalhar com pessoas e seus problemas, que ambicionava trilhar um caminho em direção ao coração dos seres humanos, estava equivocado. Afinal, julgava que as certezas dogmáticas e os argumentos da razão poderiam me amparar. Eles possuem seu espaço, mas certamente não eram o que eu precisava.

O momento em que vivia potencializou a leitura de O Hobbit.

Como um jovem que com 25 anos quase experimentara a morte, eu estava repensando várias questões. Posso dizer que O Hobbit me ajudou imensamente no processo.

Neste momento em que escrevo, tenho diante de mim o mesmo livro que recebi de presente há 25 anos. Ele já está velhinho devido às várias leituras. Mas eu o guardo com carinho. Ao folhear suas páginas lembro-me de meu querido amigo Douglas, que retornou para os EUA e do qual não tenho mais notícias; lembro-me de Sarah, minha sogra, tão solícita e pronta para ajudar no que fosse necessário; lembro-me de minha querida esposa Claudia, que praticamente adolescente enfrentava com coragem meu sofrimento e o seu próprio; lembro-me do início das noites de inverno no hospital, sempre ameaçadoras, que eu enfrentava com a companhia de Bilbo Bolseiro. Toda vez que volto a O Hobbit tenho consciência de que sem a pulsão da ficção dificilmente a vida tem sentido, ou mesmo vale a pena ser vivida. Um livro, uma história, muitas memórias!

A chegada às telas dos cinemas brasileiros do filme O Hobbit me fez pensar em minha experiência com o livro, experiência que foi tão pessoal. Afinal, o hobbit visitou-me no hospital. E isso fez um bem danado para meu corpo e minha alma!

O menino que amava Roberto Carlos

Seu nome era Geraldo. Mas, além dos pais, e talvez nem eles, ninguém o chamava assim. Ele era “Gê”, apelido de infância.

Gê, meu tio. O caçula da grande família de meu pai. E, como tal, o mais mimado, o mais querido. Por irmãos, sobrinhos, parentes, vizinhos. Em uma cidade pequena, ele era uma celebridade na vizinhança.

Ele morava com tia Laida. Ambos solteiros, espantavam a solidão fazendo companhia um ao outro. Ela cuidava dele. Ele dava sentido à vida dela. Assim eram as famílias antigas.

No final da tarde tio Peco, o irmão mais velho, passava pela casa para um bate-papo. Meu pai, sempre que possível, também se fazia presente. Eu e minhas irmãs com ele.

Nós, os sobrinhos, e éramos muitos, o adorávamos. Ele também nos amava. Tratava-nos como iguais. O Gê gostava de estar entre os familiares. Divertia-se conosco. E nós com ele.

Ele era simples, muito simples. Tinha sua roupa preferida, sua comida preferida, suas coisas preferidas. E pronto. Entre elas, e acima de todas, estava a coleção de discos do Roberto Carlos, que eram ouvidos em uma vitrola portátil. Ele possuía todos. Comprados, presentes, de qualquer forma, ele acompanha de perto “O Rei”.

Era muito bonito ver o cuidado que ele tinha com seus discos. Guardava-os militarmente arrumados. Após escutá-los limpava-os cuidadosamente. Tinha orgulho de sua coleção.

Tio Gê era uma pessoa muito simples e sensível. Não tinha sonhos, não conhecia a cobiça, satisfazia-se com o pouco que tinha e com o carinho que recebia. E do pouco que tinha, dava muito a nós.

Uma das tristezas de minha vida é que Gê morreu cedo, com cerca de quarenta anos, quando eu estudava fora. Não estive em seu funeral. Não me avisaram, talvez pelo desejo de poupar-me da dor. Ele foi e continuou sendo um menino. O menino que amava Roberto Carlos.

Lembrar do tio Gê é lembrar de um tempo em que as famílias eram grandes, estavam sempre reunidas, os parentes cuidavam uns dos outros, e as diferenças eram aceitas, compreendidas. Tempos de simplicidade e de felicidade. Tempos em que ter todos os discos do Roberto Carlos era o maior bem que se podia desejar. Tempos em que o tio Gê estava entre nós.

Ah, mais uma coisa. Ele era portador da Síndrome de Down.