quinta-feira, 20 de junho de 2013

Raiza

Lygia Fagundes Telles gosta de gatos. Ela inicia o livro A disciplina do amor com três crônicas dedicadas a eles.

Eu prefiro os cães.

Cresci tendo-os ao meu lado. Meu pai criava cães desde moço, preferencialmente pastores alemães. Vi e convivi com várias ninhadas desses maravilhosos animais. Mas também tive a companhia de pincheres, collies, foxes e, claro, vira-latas.

Um cachorro em particular marcou minha vida. Já estava casado e com filhos quando ela chegou. Uma bolinha de pelos cor caramelo. Era uma cocker spaniel. Ficamos imediatamente apaixonados por ela. Demos-lhe o nome de Raiza, o que nos trouxe alguns constrangimentos posteriores com seres humanos homônimos.

As crianças, pequenas, tratavam Raiza como uma boneca ou como um amiguinho, dependendo dos braços que a carregavam. Eu e Claudia a recebemos como um novo membro da família. Como acontece com os cães, ela também se afeiçoou a nós. Passamos a ser sua família.
Raiza cresceu e tornou-se uma jovem bela e inteligente. Seguindo seu instinto caçador, quando a soltávamos no grande quintal da casa em que vivíamos na época, ela corria, farejava os cantos e latia em busca de presas inexistentes. Depois, cansada, retornava até nós cheia de satisfação.

Quando Claudia ficou grávida de Joao Guilherme, Raiza era o membro da família que mais a paparicava. Ficava ao lado de Claudia o tempo todo, como a protegê-la. Algum tempo depois, era João Guilherme que brincava com Raiza e se divertia levando-a para passear.

Tentamos cruzá-la várias vezes. Mas Raiza nunca aceitou o companheiro. Ficamos tristes, mas, ao mesmo tempo, intimamente contentes, pois o veterinário nos explicou, talvez com certo exagero, que ela era tão apegada a nós que não aceitava os machos.
Raiza era muito brava. Latia para a própria sombra e para qualquer ruído. Os latidos só diminuíram com a chegada da surdez.

O tempo passou e Raiza nos acompanhou. Mudamos de casa, de cidade, e ela conosco. Ela viu nossos filhos crescerem. E envelheceu.
A idade trouxe problemas de saúde. Sofreu com vários tumores. Quase morreu com um deles. Fez uma cirurgia de risco e ficou dias hospitalizada. Foi emocionante quando a visitamos logo depois da operação. Com uma costura enorme na barriga, trêmula e com dores, ao nos ver levantou-se com grande esforço, mas com uma expressão de extrema alegria. Éramos as pessoas a quem ela amava e deseja ter ao seu lado. Saímos dali com olhos embaçados de lágrimas de alegria por vê-la bem e de emoção por presenciarmos cena aquela cena de amor explícito.

Algum tempo depois, ela sofreu um derrame e passou a caminhar com dificuldade. Mas bastava ver um de nós para sair da casinha ou do canto onde costuma ficar e caminhar vagarosamente para ficar ao nosso lado.

Nova mudança, agora para um apartamento. E com muita tristeza tivemos que deixar Raiza com Cacau, irmão da Claudia, em outra cidade. Nós a visitávamos com certa regularidade, momentos de alegria para todos. Ela estava velhinha. Mas nunca deixava de expressar alegria ao nos ver.

Enfim, chegou a notícia que temíamos. Ficou muito doente, sem possibilidade de melhora. A sugestão do veterinário: sacrificá-la para aliviar o sofrimento. Alívio para ela, aumento de sofrimento para nós. A sensação era de estarmos traindo o amor de Raiza. Mas, racionalmente, sabíamos que era o certo a ser feito.

Não tivemos coragem de nos despedir. Isso ainda dói em nossos corações quando lembramos dela.

A lembrança sempre presente de Raiza confirma o amor que nutríamos por ela. Afinal, nós, seres humanos, guardamos na memória e no coração pessoas que foram especiais para nós.

E Raiza foi.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Imagem surreal

Sete e meia da manhã de um dia frio, eu passava em frente à Santa Casa de São Paulo em direção ao trabalho. Aglomerado de prédios históricos, de tijolo à vista, com belos jardins, a Santa Casa compõe um complexo com uma bela paisagem em meio aos prédios de concreto.

No entorno do hospital as pessoas caminham apressadas, aquelas que podem, pois sempre há idosos e doentes. Estes chegam lentos, muitas vezes à pé, despejados dos ônibus e do metrô, por vezes cambaleantes em busca de auxílio, e, igualmente lentos, saem do hospital com expectativa de melhora.

Em meio à agitação, enquanto caminhava pela longa calçada em frente a Santa Casa, notei papelões espalhados rente ao muro. Era uma fileira de caixas de papelão abertas e estendidas pelo chão. É provável que elas tenham sido usadas originalmente para guardar e agasalhar pacotes de feijão, de arroz, quem sabe produtos de limpeza, eletrodomésticos. Mas agora elas guardam e agasalham pessoas.
Elas estão deitadas sobre os papelões e enroladas em cobertores sujos, malcheirosos, em farrapos. São várias. Infelizmente esse quadro não era novidade para mim. Em muitos lugares de São Paulo, as noites e manhãs apresentam esse cenário: pessoas que se preparam para dormir, pessoas que dormem, pessoas que acordam. Todas nas ruas, se ajeitando como podem.

Mas nessa manhã a situação era diferente. Não eram apenas pessoas. Eram jovens e crianças. Deitados enfileirados, lembravam a casa de nossos avós quando os netos se reuniam, e na hora de dormir era aquela festa, a criançada toda dormindo junta. Aqui, entretanto, não havia festa. Havia crianças dormindo lado a lado, mas não havia alegria. Afinal, a vó, que certamente nunca conheceram, não estava ali para preparar o leite para que tomassem antes de dormir, e a mãe, que talvez tenha abandonado alguns deles, não entraria no quarto fictício para acordá-las com um beijo pela manhã.

Havia a realidade nua e crua. Jovens e crianças abandonadas ao próprio destino que se unem, possivelmente para se protegerem mutuamente, mas também para ingerir drogas, roubar, esperar o tempo passar e tentar viver mais um dia.

Em meio a essa série de imagens e pensamentos que vinham à minha mente, meus olhos pararam em um corpo que estava no meio dos demais. Na realidade era um corpinho. Com uma cabecinha com cabelos loiros encaracolados. Enquanto os outros tentavam esticar o sono um pouco mais, ela, acho que era uma menina, já estava acordada e parada. Parece que pensava na vida. Não teria mais de oito anos. Idade de meu filho caçula. O que uma criança, nessa situação, poderia pensar?

Refleti. O que são essas crianças que enfrentam a crueldade de uma sociedade que simplesmente virou as costas para elas? O que pensam sobre os adultos que passam indiferentes por elas? O que esperam da vida? O que sonham, se é que sonham?

Roland Barthes, um teórico da literatura, tinha um conceito que intitulou de “efeito de real”. Para ele, em determinados textos literários, alguns elementos do cenário exercem uma única função – a de transmitir para o leitor a sensação de que aquilo que se apresenta tem identidade com a realidade. A descrição de um armário em um quarto, de um quadro em uma sala, de uma rosa no campo.

Talvez essa menininha, que poderia ser minha filha, exerça, para nossa sociedade, a simples e única função de efeito de real. Ela faz parte do cenário urbano no qual todos nós transitamos. Na verdade, ela nem é humana, real. É um elemento estético que aponta para outra realidade. A realidade de uma sociedade embrutecida, que se acostuma com as barbaridades que sofre e pratica diariamente. Uma sociedade que contempla, como faz com o cenário de um filme ou uma pintura, crianças dormindo na calçada em um manhã fria, podendo, no máximo, julgar que a cena é inconveniente.

Efeito de real. É isso que as mazelas de nossa sociedade são para nós. Damo-nos o direito de nos ausentarmos da discussão e transformação desse quadro. Na prática, os problemas sociais não são reais para nós. Como a menininha de cabelos loiros encaracolados, dormindo na calça de uma São Paulo indiferente. Uma imagem que se fixou em minha retina.