terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O menino Jesus em Alepo

Sentado sobre a maca, em um hospital em caos, o pequeno olha para a câmera. Os cabelos estão endurecidos pela poeira. O sangue mancha sua testa e escorre até os olhos. Estes contêm um misto de perplexidade e distância. Ele deve ter dois anos de idade. Suas pequenas mãos, mãos de um quase bebê, são mostradas em close. Estão paradas, os dedos se movimentando de forma ritmada, talvez em busca de uma harmonia há muito perdida.

O título da matéria é: " Alepo é um lugar onde as crianças pararam de chorar."

Impressiona o fato da criança não chorar. São os adultos que choram. Ela os vê, um, dois, três, muitos, e permanece em silêncio, provavelmente olhando para dentro de si em busca de um mundo inexistente, que certamente não mais retornará, como seus pais, mortos em um bombardeio.

A cidade mais populosa da Síria encontra-se em ruínas. Tropas pró governo e rebeldes lutam. O governo, para conquistar a cidade. Os rebeldes, para manter os poucos pontos onde ainda estão em vantagem. Em meio às batalhas, uma mortandade sem fim espalha corpos de civis entre destroços e ruas. Muitos corpos são pequenos, de crianças que um dia brincaram pelas ruas, que um dia sonharam em ser gente grande. Hoje, seus pequenos corpos estão espalhados pela cidade, transformada em um grande e terrível cemitério ao ar livre.

A morte de civis é inaceitável. A morte de crianças é uma monstruosidade.

O choro de mães e pais ecoa um antigo choro. O de Raquel, simbolizando as mães de Israel que choraram seus filhos que haviam sido levados para o exílio babilônico (Jr 31.15), e mais à frente, o choro de mães belemitas que choram a morte de seus filhos pelos soldados de Herodes (Mt 2.2.16-18).

Herodes pretendia matar o menino Jesus. Mas foi enganado pelos magos e pelos pais de Jesus, que, avisados pelo anjo, fugiram para o Egito.
Jesus escapou da mortandade. Seus pais conseguiram fugir. Jesus chorou? Certamente, diante da pressa da fuga, de situações de desconforto e perigo para um recém-nascido. José e Maria choraram? Muito provavelmente, frente à maldade de Herodes, frente às incertezas da fuga e da vida em um país estranho.

Eles sabiam que Herodes era o inimigo. Também sabiam que os magos eram amigos, e os anjos, mensageiros de Deus para salvá-los.

As crianças em Alepo não sabem nada.

De onde vem as bombas que desintegram seus pais, irmãos e amigos? Quem alveja suas casas? Estarão vivos no próximo dia ou, na manhã seguinte, a casa ou apartamento onde moram simplesmente se resumirá a escombros, caixão desajeitado para seus pequenos corpos?

Quem são os amigos? Ainda existem amigos? Por que não vem salvá-las? Por que não impedem que bombas caiam? Por que não as colocam em carros e os levam para longe do inferno? Por que não as levam ao encontro de seus pais e irmãos, ainda que isso seja um pedido impossível de ser cumprido?

As crianças em Alepo não conseguem chorar. Esqueceram como se chora? As lágrimas secaram? Estão acostumadas com a brutalidade diária?

Elas olham atônitas, com olhos embasados, cenas infernais se desenrolarem como um filme de terror.

O menino Jesus está em Alepo. As mães choram os filhos que já não existem.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

A Babilônia é aqui!

Pressionado pela política das grandes nações.

Ouvindo vozes de falsos profetas que repetem com convicção: paz! Paz!

Testemunhando governantes corruptos subirem ao trono um após outro.

Sendo guiado por líderes que agem como pastores que destroem as ovelhas.

Vendo os tesouros do Templo serem levados por alianças espúrias com pretensos aliados.

A fome acompanhando os mais pobres como a sombra em dia de sol.

Perdendo seus jovens e promissores profissionais para as potências.

Assistindo ao desaparecimento dos elementos estruturadores da sociedade: a terra, a cidade e o Templo.

Rechaçando os profetas e seus vaticínios como palavras de lunáticos radicais.

Marchando em direção ao exílio onde permanecerá por setenta anos.

Israel estava no exílio.

O povo havia sido levado para a Babilônia, desterrado em virtude de seus contínuos pecados.

Os mesmos profetas que haviam predito o exílio profetizaram o retorno. Ainda havia esperança.

Tempos de sofrimento eram também tempos de revisão de vida e redirecionamento de caminhada.

Estamos no exílio.

Sim, em pleno século 21, nós, brasileiros, estamos na Babilônia!

A história de Israel renasce em nossa história.

Vivemos a consequência de nossos pecados individuais, coletivos, estruturais.

Nossas lideranças políticas, com raras exceções, nos enganam, nos vendem, são falsos profetas de uma paz cada vez mais distante. Os donos do capital vendem e compram corrupção.

Os poderes que estruturam nossa nação estão tão destruídos como os muros de Jerusalém e as colunas do Templo. Não sobrou tijolo sobre tijolo.

Nossos tesouros, nossos muitos tesouros têm sido entregues em negociatas combinadas nas sombras da noite e comemoradas sob a luz de gabinetes encarpetados ou em restaurantes chiques.

Nossos pobres, como sempre, choram e lamentam as dores do passado e a desesperança do futuro.

Os jovens talentosos de nosso povo têm sido levados por multinacionais e universidades de países ricos. Não querem mais viver aqui.

Ficamos calados, sem resposta, quando nossos filhos nos perguntam sobre o futuro.

Estamos na Babilônia!

E, o que é pior, não há profetas para predizer o retorno para nossa terra. E aqueles que o fazem tem sotaque, cheiro e jeito de falsos profetas.

Estamos na Babilônia!

Quando voltaremos para nosso querido Brasil? Quando os reis, os governantes, os poderosos permitirão que retornemos? Daqui a setenta anos? Quem nos dera termos um Jeremias que nos desse tal esperança!

Quando acabarão as mentiras, as corrupções, os desvios, os desmandos, os líderes enganadores?

Quando voltaremos para o Brasil, meu Deus?

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

É Natal. Silêncio!

Em meio ao agito de corpos e ao vozerio ela medita no mais profundo de seu coração.

Os acontecimentos se sucedem de tal forma que ela procura não se deixar vencer pelas intermináveis novidades que a cercam.

A tensão se instaura em seu coração. Por um lado, a imprevisibilidade do aparecimento do anjo anunciando sua gravidez quando ela ainda é virgem. Ela prevê tensões conjugais, com familiares, com a sociedade. Nos momentos finais de gravidez, a difícil viagem de Nazaré para Belém, a falta de um canto sequer para se deitar a fim de aliviar as contrações, a solidão entre animais, tendo ao lado apenas José.

Por outro lado, a alegria incontida de sua prima, Isabel, ao receber a notícia de sua gravidez. O êxtase de humildes pastores nos campos ao ouvirem vozes angelicais que anunciam o nascimento do Salvador e o encontro pleno de emoção com o recém-nascido. O prazer de ouvir profecias e louvores a respeito de seu filho vindos dos lábios dos anciãos Simeão e Ana.

Alegria e tristeza. Maria não consegue dominar seus sentimentos. Compartilha-os com José? Alguns sim, outros não. Por que foi escolhida para essa missão? Por que seu filhinho querido, embora igual aos demais bebês deveria ser, ao mesmo tempo, tão diferente de todas as outras crianças? Por que a salvação que seu filho trará à humanidade deve significar para ela tão brutal sofrimento ao vê-lo morrer? Saber que perderá seu filho amado, mas que a humanidade ganhará um salvador, não pacifica seu coração.

Enquanto os acontecimentos se sucedem e os sentimentos varrem seu coração como ondas bravias, ela “guarda tudo que ouve e medita em seu coração” (Evangelho de Lucas 2.19).

A mulher que dentre todos os seres humanos em todas as épocas esteve mais próxima do natal e do menino Jesus, e o viveu em sua maior intensamente, medita.

Lutando, Maria não se deixa vencer pela alegria ingênua e nem pela dor antecipada. Ela se prepara para a alegria e para o sofrimento. Medita.

O natal traz sentimentos conflitantes. Pessoas são tomadas de exultação e se envolvem de forma incontida em festas, compras, bebidas. Outras, veem impotentes seus corações serem devastados por ventos tempestuosos de tristezas e dores passadas que teimam em ressurgir nessa época. Uns viajam para verem mais luzes, mais festas, mais gente. Outros viajam para o isolamento de tudo e de todos que a dor requer.

Poucos meditam. Poucos dialogam com seu coração. Poucos, em lugar de abrir as portas do coração de forma desavisada, ou de fechá-lo com trancas para isolá-lo de sentimentos, permitem que o coração fale e meditam naquilo que ouvem.

Fogos, vozes, cantos, felicitações, festas.

Meditação, silêncio. Mesmo que por alguns instantes.

É o legado de Maria neste natal.