quinta-feira, 30 de maio de 2013

As partes

Italo Calvino, escritor italiano já falecido de quem gosto muito, escreveu entre tantos livros uma espécie de trilogia: O visconde partido ao meio, O barão nas árvores, O cavaleiro inexistente. Diverti-me muito lendo-os anos atrás. Texto ágil, narrativa cativante, humor fino. Ficção humanizada. Em todos.

Os três livros, cada um a seu modo, tematizam as incompletudes do ser humano. O visconde é partido em dois em uma batalha. Cada parte em diametral oposição à outra. O barão, frente a uma crise familiar, sobe nas árvores dando as costas aos que embaixo ficam. E de lá nunca mais desce, passando a ter outra visão do mundo e outro tipo de envolvimento com a sociedade. Já o cavaleiro... bem, é o livro que mais aprecio. O cavaleiro não existe fisicamente. Ele é reconhecido apenas pela voz que soa misteriosamente de dentro da armadura vazia. Além de tudo, sua existência se efetiva pelo exercício da razão. Ela é sua fonte de identidade. É a razão que governa suas ações e sua quase incapacidade de amar. Ao amar... não, não contarei o fim da história.

Os livros são de um período em que Calvino se fascinava pelo ser humano. Depois de algum tempo deixou de fazê-lo. A tal ponto que alguns, talvez maldosamente, atribuíram a ele a alcunha de misantropo. Pena.

Entre risos despertados pelas trapalhadas de seus protagonistas, os livros permitem uma reflexão. Somos parte. Parte que se encontra em crise com as diversas partes do ser, parte que encontra contrapartes em oposição, parte que simplesmente nega as demais partes e busca outra maneira de existir no mundo, parte que tem sua existência negada, mas que reafirma seu direito, mesmo que de parte, de existir, parte que carece de completude, parte, sempre parte.

Antes que eu e você sejamos tomados de autocompaixão, lembremos que Calvino trata desse assunto de forma irônica, cômica. Isso me faz lembrar uma frase: “A capacidade de rir de si mesmo nos aproxima do divino”. É, acho que é verdade. E Calvino também concordaria. Afinal, nada mais chato do que viver julgando-se uma totalidade, um todo. Nada mais chato do que os todos que estão por aí. Todo cheio de si, todo arrogante, todo autossuficiente, todo sábio, todo bonito, todo tudo. São insuportáveis esses todos!

Fico com as partes de Calvino. No mínimo, elas despertam simpatia. E, no final, as partes estão sempre e incorrigivelmente em busca de outras partes. E partes podem se encontrar na brincadeira de crianças, no coleguismo de adolescentes, na amizade de trabalho, na partilha de ideologias e de crenças, no amor de coração e de carne, na companhia entre velhinhos.

Sim, as partes são mais fascinantes.

domingo, 26 de maio de 2013

Amor

Desde o modo – desculpem-me os românticos – piegas de chamar o (a) amado (a): “Amoooor...”, até as versões gregas do amor (eros – sexual; fileo – de amigos; ágape – sacrificial, verdadeiro), o amor tem variações. E como!

O amor está circunscrito aos relacionamentos humanos, embora sempre exista alguém que declare: – Como amo meu cachorro, gato, papagaio, iguana, porquinho da Índia, peixinho etc., etc.!

Mesmo sendo uma característica do relacionamento entre pessoas, como a palavra apresenta variações de sentido! Pense em uma criança. Todos riem, se emocionam até, quando uma delas declara para a mamãe ou para a vovó: – te amo! Mas, sejamos sinceros, o pequerrucho está apenas repetindo aquilo que aprendeu com os seres que afirma amar. Quando ele repete a palavra, e recebe em troca sorrisos e agrados, continuará agindo dessa forma, mesmo sem entender.

Agora, vejamos o exemplo dos adolescentes e jovens. Embora tenham abolido os relacionamentos sérios (pelo menos muitos deles), definidos pelos antigos como namoro, em troca de experiências rápidas de envolvimento físico, definidas tecnicamente como “ficar”, não nos enganemos. O amor está presente. E muito! Em um cantinho escuro, ou no carro, o rapaz declara: – Te amo! E os beijos aumentam de intensidade, e as mãos ficam inquietas. Ou então, de modo pragmático ele propõe – Vamos fazer amor? (embora em muitos casos o termo mais usado seja mesmo “transar”).

Já o adulto utiliza mais seletivamente a palavra. Na comemoração de aniversário do (a) esposo (a) ela estará presente. Em um dia em que tudo deu certo no trabalho, o maridão chegará em casa e, surpresa, lançará repentinamente em direção da mulher a declaração: – Te amo! Mas desconfio que nesse caso a amada servirá apenas como um espelho que revelará um espírito egocêntrico em um momento de autossatisfação. Ou então, após um jantar especial, feito por ela ou pago por ele, a palavra amor surgirá fácil em meio a outros elogios.

Bem, e os velhinhos? Os casais de cabecinhas brancas também declaram amor uns aos outros. Mas, para ser sincero, se não utilizarem a palavra, não fará muito diferença. O fato de estarem convivendo lado a lado, durante décadas, a experiência concreta dos votos “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza”, demonstra de modo inquestionável que o amor existe e é real em suas vidas.

E a última expressão do amor, vertida em frase por vezes proferida diante da sepultura do amado? Qual seu sentido? Obviamente não visará recompensa. Não buscará a concretização de algo. Excetuando o fato de poder ser uma forma de justificativa esfarrapada diante dos presentes, que procura demonstrar um amor que de fato nunca existiu, o uso da palavra será uma declaração dolorida de si para si mesmo a respeito da falta que ela (e) fará. – Eu te amo! significará, na verdade: – Sentirei sua falta! Falta de quê? De que amor? Do amor infantil, do amor adolescente, do amor maduro, do amor que une até o fim da vida.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Festa

Era uma daquelas viagens em que todos estavam descontraídos, alegres. Saíamos de férias. Eu, Claudia, e os filhos Timóteo e Melina, ainda pequenos.

Carro cheio de malas, bolachas, água, balas e sei lá mais o quê (sempre há mais alguma coisa em carro com crianças). Depois de um semestre de aulas cansativas, pelos menos era o que as crianças achavam, e de trabalho duro para os adultos, viajávamos em busca do merecido descanso.

Para distrair Timóteo e Melina, Claudia liderava as conversas, as músicas, tanto as conhecidas como aquelas que tentava ensinar, e, em certo momento, propôs que lembrássemos de textos da Bíblia. Pela leitura frequente, certas passagens vão sendo memorizadas. Além disso, as crianças aprendiam dominicalmente histórias bíblicas na igreja.

E lá fomos nós. Cláudia recitava o início de um texto e as crianças tentavam completar.

– “Deus é...
–... amor”.
– “Lâmpada para meus pés é a tua palavra...
–... e luz para o meu caminho”.
– “Jesus...
– ... chorou” (sim, esse é um versículo da Bíblia).
– “Vós sois...
– ... o sal da terra”.

Depois de algum tempo, Claudia sugeriu uma variação. – Vamos recitar o salmo 23, cada um uma parte.
Como é um dos salmos mais conhecidos da Bíblia, não seria difícil seguirmos de cabo a rabo pelo salmo.

Começamos.

- “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará” – Claudia.
- “Ele me faz repousar em pastos verdejantes” – Eu.
- “Leva-me para junto de águas de descanso; refrigera-me a alma – Timóteo.
- “Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome” – Melina.

As coisas iam razoavelmente bem. Claro, por vezes tínhamos que ajudar com uma palavra, uma expressão, mas as crianças estavam dando conta.

Mais à frente havia um fragmento de maior complexidade pela linguagem e extensão. O texto diz: “Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários ...”.

Coube à Melina, a mais nova dos irmãos, esse trecho. Senhora de si, sem hesitar, recitou o texto com voz confiante:
– “Preparas-me uma mesa no dia do meu aniversário!”.

- Hã...?! – Como é que é? “... no dia do meu aniversário???”. Dissemos quase a uma só voz.

Nada de mesa diante de adversários, que não faz nenhum sentido para uma criança. O que faz sentido, em uma viagem de férias, é alegria, diversão... festa. Portanto, nada melhor do que Deus tomar sobre si a responsabilidade de não deixar passar em branco o aniversário da Melina. Para ela, a festa estava garantida. “Preparas-me uma mesa no dia do meu aniversário!”. Bem, depois dessa, risos, risos e mais risos.





segunda-feira, 20 de maio de 2013

Ressurreição. A que horas?

Domingo à noite, final do culto na igreja protestante do interior. Após o canto do último hino e da oração de encerramento, antes de sairmos, o pastor passa aos avisos.

Pessoa séria, com ares solenes próprios da liturgia que seguiu obedientemente, o pastor informa a igreja sobre as atividades da próxima semana. Terça-feira: culto das mulheres na casa da irmã fulana; quarta: reunião dos homens no templo; sábado: encontro dos adolescentes à tarde e dos jovens à noite, e assim por diante.

O último e mais importante aviso diz respeito a uma atividade especial que acontecerá no próximo domingo, domingo de páscoa. Seguindo a tradição das igrejas protestantes, haverá um culto de páscoa, momento em que a igreja celebra a ressurreição de Jesus Cristo. Há uma liturgia especial com hinos cantados pelo coral e pela comunidade, orações e pregação do pastor, todos voltados para o tema da ressurreição.

Eis o pastor, então, em seu último aviso: – Irmãos, domingo que vem haverá o culto da ressurreição!, diz ele, com voz clara e forte. – Todos estão convidados! – Convidem amigos! Tragam familiares! – Depois do culto haverá um café da manhã.

Nós, os jovens, ouvíamos o aviso com certa distração, já pensando no encerramento do culto, quando iríamos para o salão nos fundos da igreja tomar refrigerante, comer bolacha e, principalmente, conversar, dar risadas, ter momentos de descontração. Os adultos, inquietos, preparavam-se para ir embora, certamente pensando no final da noite fria e nas partes do Fantástico que ainda conseguiriam assistir.

Para encerrar, o pastor informa triunfalmente: – O culto será às 6 horas da manhã!

– FIUUUUUUUUUU... CEDO, HEIN?! O aviso foi seguido, de imediato, por um longo assobio e pela expressão curta e assertiva.

Ficamos todos espantados. Uma onda ininterrupta de cabeças virava e revirava em busca do autor da manifestação totalmente estranha que, de forma tão abrupta, quebrara a solenidade do final do serviço religioso. Por fim localizamos, assentado em um dos últimos bancos do templo, o responsável – um bêbado.

Ele ficara em silêncio durante todo o culto, passando mesmo despercebido. Mas agora, talvez já cansado por ter ficado sentado por mais de uma hora, não resistira a esse último exemplo de disciplina espartana por parte dos protestantes. Talvez pensasse: culto à noite, tudo bem, é um lugar quente para se acomodar em uma noite fria, bom até para tirar um cochilo. Mas culto às 6 horas da manhã? Aí não! Aí já é demais! “Cedo, hein?!”

Sua manifestação espontânea pegou a todos de surpresa. Depois de alguns segundos de suspense, gargalhada geral. Afinal, é bem provável que ele tenha expressado o que muitos ali pensavam naquele momento.

Tia Celita morreu. E agora...

Após o ofício fúnebre de tia Celita perguntaram-me por que eu não falei. O que estava subentendido é que, como pastor, deveria ter falado alguma coisa. Meio sem graça, disse que não gosto de falar nessas horas e, pensei comigo, vários pastores já haviam falado. Disse também que escreveria alguma coisa. Prefiro a escrita, afinal, em lugar da voz embargada que sempre teima em aparecer nesses momentos e o choro que fecha a garganta em um abraço sufocante impedindo a fala, a escrita permite-me refletir, pensar, e, mesmo emocionado, continuar escrevendo sem interrupções. Para isso os computadores são grandes amigos, pois não carregam os vestígios das lágrimas que buscam persistentemente as folhas de papel e depositam nelas as marcas do coração.

Conheci tia Celita no final dos anos 1970 quando comecei a namorar Claudia. Ela, filhos e netos – no início poucos, depois muitos –, visitavam constantemente a casa da mãe, vó Mária, em Itapetininga. A chegada dos familiares era motivo de festa e encontro entre irmãs e hostes de primos e primas que expandiam sua alegria pela casa, vizinhança e praças da cidade.

Desde os primeiros contatos com tia Celita fiquei impressionado com o que ela me disse: “oro por você todos os dias”. Algum tempo depois fui estudar no seminário presbiteriano em Campinas e Celita, toda vez que me encontrava, continuava dizendo: “oro por você todos os dias. Pastores precisam de oração constante!”.

E assim se deu. Os anos foram passando, casei-me com Claudia, tive filhos. Tia Celita, por sua vez, viu sua vida ser enriquecida com o aumento constante da família. Nossas vidas mudaram. O que não mudou, quando nos víamos, era sua frase: “Oro por você todos os dias”.

Embora julgasse a oração de tia Celita importante, nunca me dei conta de seu real valor. Hoje, penso: de quantas situações fui livrado pela graça e poder de Deus por causa de suas intercessões? Quantas vezes fui fortalecido e recebi graça dobrada pelo fato dela se encontrar de joelhos apresentando a mim e minha família diante do trono de Deus? Quantas vezes o diabo e seus demônios, quando prestes a me tragar, foram colocados para correr por Deus e seus anjos como resposta às orações de tia Celita?

Tia Celita morreu. E agora...

Eu acredito na oração. Creio que Deus, em sua bondade e poder, responde aqueles que dele se aproximam. Tenho convicção de que não há maior meio de graça e de comunhão com Deus do que a oração. E estou certo de que a oração é a forma mais consistente pela qual mostramos amor aos irmãos e ao próximo.

Tia Celita morreu. E agora... quem vai orar por mim?

Sinto-me órfão de suas orações. Mais do que nunca, como nunca senti, vejo que preciso de orações.
Infelizmente a oração não está em moda. Desconfio que os cristãos contemporâneos desaprenderam a oração, impedindo que suas almas respirem e outras pessoas sejam abençoadas. Faltam pessoas como tia Celita. Faltam pessoas que simplesmente digam: oro por você todos os dias!

Outras pessoas oram por mim? Acho e espero que sim. Mas como tia Celita certamente não. Acho que serão necessárias dezenas de cristãos para ocupar o espaço de oração que tia Celita ocupava diante de Deus.
Tia Celita morreu. Desculpem-me filhos e filhas, genros, noras, netos, mas, egoisticamente, o que mais sentirei falta é de sua fala mansa me dizendo a todo encontro: “Oro por você todos os dias!”.

domingo, 19 de maio de 2013

O hobbit visitou-me no hospital!

1987, Joinville, SC. Alta madrugada, acordei com dores de estômago. Chá, repouso... e nada. Hospital. Por minha sugestão, o plantonista diagnosticou com certeza: intoxicação alimentar! Remédios e retorno para casa. Dali a algumas horas, novamente hospital. Novos remédios e descanso. Dores, e em seguida febre. No dia seguinte, na clínica particular, o médico diagnostica: infecção renal. Antibióticos, repouso, dores e febre persistentes. Com um ano de casados, depois de noites sem dormir diante de um quadro inalterado, Claudia liga para a mãe em Itapetininga, SP. Sarah se lembra do sobrinho urologista em São Paulo. Após algumas ligações, ele sugere a ida para São Paulo. Tempo de colocar poucas roupas nas malas, aeroporto, desembarque na capital paulista.

Dado nos aguardava. A intenção era levar-nos para sua casa. No trajeto, a partir da conversa e dos sintomas indicados, muda de direção e ruma direto para o Hospital Samaritano onde trabalhava. Após alguns exames, o veredito: apendicite, isto é, ex-apendicite, visto que já havia supurado. O quadro era de peritonite e de quase infecção generalizada. Restava abrir (o termo é esse mesmo!) o abdômen, lavar e esperar que o organismo se restabelecesse. Claro que Claudia precisou assinar um termo de responsabilidade devido à gravidade da cirurgia com pouca probabilidade de sucesso, segundo os médicos.

Fiquei cerca de duas semanas no hospital, sendo que por oito dias apenas no soro. Nem uma gotinha de água. Alimento, nem falar. Apenas soro! Foi nesse período que um amigo, Douglas Spurlock, visitou-me levando um livro. Disse-me que era de um autor britânico famoso por escritos que mesclavam elementos do folclore europeu, pesquisas linguísticas e mensagem cristã de fundo. Recebi O Hobbit com um misto de surpresa e curiosidade. Como não havia nada a fazer no hospital – nem levantar da cama podia –, devorei o livro. E a leitura foi simplesmente fantástica! Nunca havia lido nada igual.

Influenciado pela formação teológica que trata de argumentações, doutrinas, provas e raciocínios, ler aquela narrativa foi uma brisa renovadora para minha alma. Tenho que confessar que os elementos cristãos do livro não me fascinaram, pelo menos não nessa leitura – fiz pelo menos mais três. Mas a trama, as personagens, as aventuras, e o fato de seres tão diferentes como um mago, um pacato hobbit e anões temperamentais conviverem e se unirem em prol de um objetivo me fizeram refletir. Ademais, a inserção de orcs, fadas, dragão, elfos etc. me fascinaram mostrando como meu mundo de concretudes e seres insuportavelmente normais e previsíveis era tão carente das fantasias e tramas fantásticas que me propunham questões tão pertinentes e reais.

O contato com o livro me mostrou que é impossível viver sem imaginação. Que a ficção corre nas veias do ser humano. Que sem conhecê-la é praticamente impossível pensar o cristianismo e mesmo entender a Bíblia. Esse pequeno livro me fez ver que eu, como alguém que desejava trabalhar com pessoas e seus problemas, que ambicionava trilhar um caminho em direção ao coração dos seres humanos, estava equivocado. Afinal, julgava que as certezas dogmáticas e os argumentos da razão poderiam me amparar. Eles possuem seu espaço, mas certamente não eram o que eu precisava.

O momento em que vivia potencializou a leitura de O Hobbit.

Como um jovem que com 25 anos quase experimentara a morte, eu estava repensando várias questões. Posso dizer que O Hobbit me ajudou imensamente no processo.

Neste momento em que escrevo, tenho diante de mim o mesmo livro que recebi de presente há 25 anos. Ele já está velhinho devido às várias leituras. Mas eu o guardo com carinho. Ao folhear suas páginas lembro-me de meu querido amigo Douglas, que retornou para os EUA e do qual não tenho mais notícias; lembro-me de Sarah, minha sogra, tão solícita e pronta para ajudar no que fosse necessário; lembro-me de minha querida esposa Claudia, que praticamente adolescente enfrentava com coragem meu sofrimento e o seu próprio; lembro-me do início das noites de inverno no hospital, sempre ameaçadoras, que eu enfrentava com a companhia de Bilbo Bolseiro. Toda vez que volto a O Hobbit tenho consciência de que sem a pulsão da ficção dificilmente a vida tem sentido, ou mesmo vale a pena ser vivida. Um livro, uma história, muitas memórias!

A chegada às telas dos cinemas brasileiros do filme O Hobbit me fez pensar em minha experiência com o livro, experiência que foi tão pessoal. Afinal, o hobbit visitou-me no hospital. E isso fez um bem danado para meu corpo e minha alma!

O menino que amava Roberto Carlos

Seu nome era Geraldo. Mas, além dos pais, e talvez nem eles, ninguém o chamava assim. Ele era “Gê”, apelido de infância.

Gê, meu tio. O caçula da grande família de meu pai. E, como tal, o mais mimado, o mais querido. Por irmãos, sobrinhos, parentes, vizinhos. Em uma cidade pequena, ele era uma celebridade na vizinhança.

Ele morava com tia Laida. Ambos solteiros, espantavam a solidão fazendo companhia um ao outro. Ela cuidava dele. Ele dava sentido à vida dela. Assim eram as famílias antigas.

No final da tarde tio Peco, o irmão mais velho, passava pela casa para um bate-papo. Meu pai, sempre que possível, também se fazia presente. Eu e minhas irmãs com ele.

Nós, os sobrinhos, e éramos muitos, o adorávamos. Ele também nos amava. Tratava-nos como iguais. O Gê gostava de estar entre os familiares. Divertia-se conosco. E nós com ele.

Ele era simples, muito simples. Tinha sua roupa preferida, sua comida preferida, suas coisas preferidas. E pronto. Entre elas, e acima de todas, estava a coleção de discos do Roberto Carlos, que eram ouvidos em uma vitrola portátil. Ele possuía todos. Comprados, presentes, de qualquer forma, ele acompanha de perto “O Rei”.

Era muito bonito ver o cuidado que ele tinha com seus discos. Guardava-os militarmente arrumados. Após escutá-los limpava-os cuidadosamente. Tinha orgulho de sua coleção.

Tio Gê era uma pessoa muito simples e sensível. Não tinha sonhos, não conhecia a cobiça, satisfazia-se com o pouco que tinha e com o carinho que recebia. E do pouco que tinha, dava muito a nós.

Uma das tristezas de minha vida é que Gê morreu cedo, com cerca de quarenta anos, quando eu estudava fora. Não estive em seu funeral. Não me avisaram, talvez pelo desejo de poupar-me da dor. Ele foi e continuou sendo um menino. O menino que amava Roberto Carlos.

Lembrar do tio Gê é lembrar de um tempo em que as famílias eram grandes, estavam sempre reunidas, os parentes cuidavam uns dos outros, e as diferenças eram aceitas, compreendidas. Tempos de simplicidade e de felicidade. Tempos em que ter todos os discos do Roberto Carlos era o maior bem que se podia desejar. Tempos em que o tio Gê estava entre nós.

Ah, mais uma coisa. Ele era portador da Síndrome de Down.