sábado, 25 de janeiro de 2014

Água da vida

Tempo de preparativos.

Cachorros no canil.

Quarto pintado. Não uma pintura profissional, mas o que foi possível fazer.

Móveis, alguns comprados, outros presentes de pessoas queridas.

Roupas novas, mas também usadas por outros que já utilizam números maiores.

A bolsa. Escolhida a dedo. Com a figura de um cavalinho, como ela queria.

E lá vamos nós.

Uma. Duas. Três vezes.

Telefonemas, mensagens, carinho.

Uma densa nuvem de afeto a envolve.

Ainda não.

Dor... Alívio... dor mais forte... alívio... dor intensa...

E a bolsa.

- Minha bolsa estourou!

Surpresa, susto, seguidos de risos de alívio.

A cama molhada.

O líquido saindo aos borbulhões.

Água da vida!

Vida chegando.

Ele está às portas!



Para Melina e Mateus.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

No meu tempo...

A gente pensa que nunca vai chegar.

A gente até que tenta se adaptar ao novos tempos.

A gente tenta, inclusive, negar.

Mas o fato é que chega um momento na vida em que começamos a usar a expressão “No meu tempo...”

E ela se torna uma companheira constante, quase um vício.

Então, assumo que finalmente chegou a minha hora de dizer: “No meu tempo...”

Neste momento penso em meu passado religioso.

Entrei para o movimento evangélico no final dos anos 1970, ainda adolescente. E nesse tempo, no “Meu tempo...”

... pastor evangélico era, em geral, pobre. Mas respeitado, confiável, honesto, conhecedor da Bíblia. Nas pequenas cidades era contado entre as pessoas mais cultas.

... apóstolo era Mateus, Paulo, Pedro.

... cantávamos com a mesma alegria hinos e corinhos. Estes eram feitos por gente crente e piedosa, sem ambições artísticas, e sem cobrar por shows.

... havia diferença entre as denominações evangélicas, mas havia igualmente respeito, fraternidade, amor até. Em minha cidade no interior de São Paulo, vi mais de uma vez as igrejas presbiterianas, a Batista, a Metodista, a Assembleia de Deus e a Igreja do Evangelho Quadrangular se unirem para realizar cruzadas evangelísticas.

... havia consciência, principalmente entre os jovens, de que a missão da igreja era fazer discípulos, e que, para tanto, precisávamos sair para o mundo.

... aprendemos com o pastor e teólogo batista Russel Shedd que os cultos nas igrejas não deveriam visar o evangelismo, mas sim o ensino da Palavra, com o objetivo de edificar e instruir os cristãos.


... tentávamos desenvolver uma teologia e uma prática cristã contextualizada, autóctone, não importada do primeiro mundo econômico e teológico.

... tínhamos alegria de não mais depender de missionários estrangeiros e de seu dinheiro. Éramos igrejas pobres mas orgulhosas de viver por nós mesmos.

... não fazíamos propaganda de nossos pastores, chamando pessoas para ouvi-los. Entendíamos que o papel deles era nos ensinar e o nosso proclamar o evangelho aos nossos amigos e conhecidos.

... a doutrina era algo doméstico que aprendíamos e que nos alegrava, mas não era considerada uma bandeira e uma arma com as quais deveríamos travar batalhas com cristãos de outras denominações. A doutrina nos ensinava a adorar a Deus e a amar o próximo.

... havia reuniões de oração antes dos cultos e durante a semana. Os cristãos tinham convicção de que a oração era parte essencial da vida cristã.

“No meu tempo...” a igreja evangélica era menor, sem poder político, mas mais evangélica, mais piedosa, mais humilde, mais alegre, mais missionária e mais acolhedora.

... “No meu tempo”.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Meu cocô voltou!

Uma manhã dessas, sem maiores atrativos, estava trabalhando em meu quarto transformado em escritório quando João Guilherme, meu filho de oito anos entra, vai para o banheiro e fecha a porta. Vi tudo com o canto dos olhos, concentrado que estava na tela do computador.

Menos de um minuto depois ele volta, com uma cara assustada e afirma: - meu cocô voltou!

Deixo o que estava fazendo, ainda sem entender direito o que ele disse e pergunto: - como assim, filho?

- Meu cocô voltou, pai!

- Isso é impossível, João Guilherme, cocô não volta.

- Mas meu cocô voltou, pai, insistiu. O cocô de ontem, que entupiu o vaso, voltou!

De fato, no dia anterior, nesse mesmo vaso, João Guilherme havia tido uma diarreia violenta. Ele chamou a mim e a Claudia para socorrê-lo. A privada, que já não estava bem das pernas, não havia levado seu cocô. Ele ficou tão impressionado que quando entramos no banheiro ele estava em pé no vaso sanitário, talvez com medo de um transbordamento seguido de uma inundação... de cocô.

Intrigado com a questão que desafiava tanto a física quanto a gravidade, fui com ele até o vaso e ele apontou triunfante: - tá vendo, pai? O cocô voltou!

Olhei para a triste cena e, realmente, o vaso estava cheio.

Meio sem graça, ainda que consolado pelo fato de que minha opinião estava correta, que cocô não volta como se fosse um fantasma de mau gosto, ou como uma comida que não caiu bem, expliquei que o problema não era que o cocô dele voltou, mas que o cocô que EU havia feito pela manhã não tinha ido.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Olha o velhinho!

Eu e Claudia, minha esposa, somos bem diferentes. Esse é um dos aspectos que me atrai nela.

Costumo dizer que a síntese de nossas personalidades pode ser ilustrada em uma fila de espera. Em um banco, por exemplo. Vou para ela com um livro e saio dela com algumas páginas lidas. Claudia não. Ela vai sozinha para a fila. Mas, ao deixá-la, conversou com todo mundo, brincou com vários, contou piadas, trocou cartões, fez amizades. Assim é Claudia.

Claudia invariavelmente está de bom humor. Sempre está disposta a encontrar motivo de riso em qualquer circunstância. Procura ver algum aspecto positivo mesmo nas piores situações.

Final de ano, fomos ao supermercado. Se pudesse não iria. Prefiro a tranquilidade de minha casa, assistindo TV ou lendo um livro. Nesse dia não foi possível.

Como era de se esperar, parece que a cidade toda estava fazendo compras. E aí, os inevitáveis choques entre carrinhos, os esbarrões com a multidão, as latas caindo das prateleiras, os funcionários correndo de um lado para outro...

Estamos na seção de hortifrúti. Enquanto fico estacionado em um canto, cuidando do carrinho, com cara de paisagem, Claudia percorre com desenvoltura os corredores escolhendo um alface aqui, pegando umas batatas ali, lembrando das bananas que estão na outra banca.

Quando Claudia vem a mim trazendo vários produtos, ouvimos uma voz perguntando se o carrinho é nosso. Ao nos voltarmos vemos um rapaz que aponta para um carrinho vazio ao lado. Estranho.

Estranho um rapaz fazendo compras sozinho. Isso acontece, mas é incomum. Talvez ele esteja ali por obrigação, mesmo constrangido, não acostumado àquela bagunça. Estranho um carrinho abandonado, sozinho. Estará disponível? Ou então alguém o deixou no canto para fazer compras para em seguida colocá-las nele?

Quando eu ia responder a pergunta, racionalizando sobre as possibilidades do carrinho estar livre ou esperando seu dono, Claudia foi mais rápida. Com seu senso de humor, comenta: - está livre ou é de algum velhinho? - Acho que está livre.

O rapaz, meio indeciso, pega o carrinho, não sem antes dar uma olhada ao redor para se garantir, e sai. Quando dá os primeiros passos, dando as costas para nós, Claudia dispara: - Olha o velhinho!

O moço abaixa a cabeça e acelera o passo, temeroso de ser pego em flagrante.

Olho para Claudia e ela está rindo aos montes.

Essa é a minha esposa.