terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Natal e natais

Estava parado na rua da Consolação, em frente ao Mackenzie, onde trabalho, aguardando uma carona.

Olho para baixo, para os carros que sobem a rua enquanto espero. O sinal fica vermelho e os carros param na esquina abaixo, cerca de 200 metros de onde estou. O sol está se recolhendo e começam a surgir os primeiros sinais da noite.

No meio dos carros vejo algo que chama minha atenção. É um carro, ou não, a distância não permite distinguir, com luzes coloridas e piscantes. Firmo a vista mas não consigo maiores detalhes.

O sinal abre e os carros disparam em minha direção. Agora consigo identificar formas e contornos naquele objeto que passa rapidamente por mim. É um carro ou caminhonete adaptado em forma de trenó. Isso mesmo. Um trenó, todo iluminado com uma multiplicidade de luzes e cores, sendo dirigido por... Papai Noel? Bem, ele não está vestido a caráter. Mas é um senhor sorridente, com uma enorme barba branca, real, que conduz o trenó.

Algumas crianças com suas mães estão passando ao meu lado. Elas param, tomadas de espanto e prazer. Mães e crianças sorriem e, ao receberem o aceno do bom velhinho, retribuem com acenos, sorrisos e palmas.

Ao presenciar a cena sou lançado ao passado. Para os natais de minha infância.

Natais simples, aquilo que um funcionário público e uma costureira poderiam oferecer à sua família no interior de São Paulo. Mas a maioria deles inesquecíveis.

Um frango assado – dificilmente o peru comparecia –, maionese, às vezes um lombo, passas, castanhas, nozes, um bolo ou um doce como sobremesa. Mesa maravilhosa para mim e minhas duas irmãs.

E a preocupação de meus pais com os vizinhos mais humildes do que eles próprios. Em vários natais tivemos a companhia de alguma família conhecida, ou às vezes nem muito conhecida. Era o verdadeiro espírito do natal.

E os presentes? Lembro-me da agonia de esperar que meu pai conseguisse comprar o forte apache que eu havia pedido. Não sabia se ele encontraria o presente ou se teria dinheiro para comprá-lo. Ao final recebi o presente tão desejado. Em minha casa, presentes apenas no aniversário e no natal. Como faço anos em junho, havia um interminável intervalo de seis meses entre um presente e outro.

Naquela noite muitos heroicos soldados, cavalgando seus corcéis, mataram os malvados e terríveis índios, como aprendíamos nos faroestes norte-americanos.

E a boneca negra que minha irmã pedira? Tinha que ser negra. Na verdade, era um bebezinho negro. E lá vão meus pais pelas poucas lojas de brinquedos da cidade em busca do bebê. Lembro da irritação de meu pai diante do pedido inusitado.

Ceia saboreada e presentes recebidos no dia vinte e quatro. O dia seguinte era o momento da estreia pública dos presentes. Toda a garotada da rua saía para mostrar o que Papai Noel havia trazido. Claro que havia cenas de ciúmes diante de presentes mais caros e pomposos. Mas, no geral, todo mundo estava feliz da vida.

E assim passaram e passavam os natais.

Olho o trenó que passa por mim seguindo Consolação acima, certamente em direção à avenida Paulista, toda enfeitada para o natal.
Diante do sorriso do Papai Noel e de seu fantástico trenó, não resisto.

Junto-me às crianças e suas mães. Retribuo o sorriso, aceno com as mãos e bato palmas. É natal!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Dentista

Pensei no título. Uma palavra só? Acho que vou acrescentar alguma coisa. Tipo... sei lá. Na realidade, essa palavra não precisa de companhia. Não é mesmo? Dentista! Ela é poderosa o suficiente para subsistir por si mesma.

Lembrei-me disso dias atrás, quando fui ao dentista. Não tem como não associar uma ida a outras idas. Mergulhei no passado, nas memórias terríveis desse evento aterrador.

No primário havia atendimento odontológico na escola pública. Gratuito. E lá vou eu, com meus 10 ou 12 anos, sozinho, ao dentista. Por questões mitológicas, psicológicas, antropológicas e outras tantas, a sala do dentista ficava no segundo andar, em um canto separado de tudo e de todos, tipo castelo do conde drácula, envolto em névoas, isolado do mundo.

Chego cedo e aguardo minha vez. Enquanto isso, dou uma espiada e vejo sentada na cadeira uma menina, que pelos trajes dela e de seus pais à sua volta deveria ser da zona rural, ou da roça, como dizíamos.

Ela está aos gritos, lutando com o dentista. Ele tenta sem nenhum êxito inserir um instrumento enorme, com uma agulha igualmente enorme, na boca da menina. Ela grita, esperneia, bate. Os pais, bem... eles tentam fazer alguma coisa, sem saber ao certo o quê. Por fim, a menina, vitoriosa, consegue fugir da cadeira e sai correndo do consultório. Passa por mim mas não me vê. Eu a vi.

Ouço o dentista dizer uns impropérios. Saem os pais totalmente encabulados. Momentos depois ouço, em meio ao silêncio que se instaurou, do fundo da sala, que naquele momento se tornava uma masmorra reservada para os mais terríveis açoites e inimagináveis torturas: – Próximo!

No momento seguinte, aquele que seria o próximo, EU, estava descendo, ou melhor, quase rolando pelas escadas em direção à saída da escola. Em meu desespero, quase ultrapassei a menina que me antecedeu.

Décadas depois, estou sentado, com a boca aberta, mãos cruzadas, corpo tenso, olhando para um teto branco e infinito. E ainda ouço a pergunta: - Acho que não precisa de anestesia, né?! Lembro da menina.

Consigo sair vivo. Sempre saio vivo. Mas levo mais uma lembrança de dentista. DENTISTA.

Onde estará a menina? Será que ela lembra daquele dia? E se ela nunca mais voltou ao dentista? Imagina! Uma pessoa já madura, afundada em uma cama ou sofá, isolada do mundo, com um único e torturante pensamento: Dentista! Dentista! Dentista! Eu a entenderia.

Mas e se, por outro lado, ela venceu o medo e agora desfila sem traumas e sequelas pelos gabinetes odontológicos do Brasil e do mundo afora? Sorridente, mostra a tudo e a todos as maravilhas que os homens de branco fizeram e fazem em sua boca.
Se a encontrar direi, sem titubear: traidora!