terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Natal e natais

Estava parado na rua da Consolação, em frente ao Mackenzie, onde trabalho, aguardando uma carona.

Olho para baixo, para os carros que sobem a rua enquanto espero. O sinal fica vermelho e os carros param na esquina abaixo, cerca de 200 metros de onde estou. O sol está se recolhendo e começam a surgir os primeiros sinais da noite.

No meio dos carros vejo algo que chama minha atenção. É um carro, ou não, a distância não permite distinguir, com luzes coloridas e piscantes. Firmo a vista mas não consigo maiores detalhes.

O sinal abre e os carros disparam em minha direção. Agora consigo identificar formas e contornos naquele objeto que passa rapidamente por mim. É um carro ou caminhonete adaptado em forma de trenó. Isso mesmo. Um trenó, todo iluminado com uma multiplicidade de luzes e cores, sendo dirigido por... Papai Noel? Bem, ele não está vestido a caráter. Mas é um senhor sorridente, com uma enorme barba branca, real, que conduz o trenó.

Algumas crianças com suas mães estão passando ao meu lado. Elas param, tomadas de espanto e prazer. Mães e crianças sorriem e, ao receberem o aceno do bom velhinho, retribuem com acenos, sorrisos e palmas.

Ao presenciar a cena sou lançado ao passado. Para os natais de minha infância.

Natais simples, aquilo que um funcionário público e uma costureira poderiam oferecer à sua família no interior de São Paulo. Mas a maioria deles inesquecíveis.

Um frango assado – dificilmente o peru comparecia –, maionese, às vezes um lombo, passas, castanhas, nozes, um bolo ou um doce como sobremesa. Mesa maravilhosa para mim e minhas duas irmãs.

E a preocupação de meus pais com os vizinhos mais humildes do que eles próprios. Em vários natais tivemos a companhia de alguma família conhecida, ou às vezes nem muito conhecida. Era o verdadeiro espírito do natal.

E os presentes? Lembro-me da agonia de esperar que meu pai conseguisse comprar o forte apache que eu havia pedido. Não sabia se ele encontraria o presente ou se teria dinheiro para comprá-lo. Ao final recebi o presente tão desejado. Em minha casa, presentes apenas no aniversário e no natal. Como faço anos em junho, havia um interminável intervalo de seis meses entre um presente e outro.

Naquela noite muitos heroicos soldados, cavalgando seus corcéis, mataram os malvados e terríveis índios, como aprendíamos nos faroestes norte-americanos.

E a boneca negra que minha irmã pedira? Tinha que ser negra. Na verdade, era um bebezinho negro. E lá vão meus pais pelas poucas lojas de brinquedos da cidade em busca do bebê. Lembro da irritação de meu pai diante do pedido inusitado.

Ceia saboreada e presentes recebidos no dia vinte e quatro. O dia seguinte era o momento da estreia pública dos presentes. Toda a garotada da rua saía para mostrar o que Papai Noel havia trazido. Claro que havia cenas de ciúmes diante de presentes mais caros e pomposos. Mas, no geral, todo mundo estava feliz da vida.

E assim passaram e passavam os natais.

Olho o trenó que passa por mim seguindo Consolação acima, certamente em direção à avenida Paulista, toda enfeitada para o natal.
Diante do sorriso do Papai Noel e de seu fantástico trenó, não resisto.

Junto-me às crianças e suas mães. Retribuo o sorriso, aceno com as mãos e bato palmas. É natal!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Dentista

Pensei no título. Uma palavra só? Acho que vou acrescentar alguma coisa. Tipo... sei lá. Na realidade, essa palavra não precisa de companhia. Não é mesmo? Dentista! Ela é poderosa o suficiente para subsistir por si mesma.

Lembrei-me disso dias atrás, quando fui ao dentista. Não tem como não associar uma ida a outras idas. Mergulhei no passado, nas memórias terríveis desse evento aterrador.

No primário havia atendimento odontológico na escola pública. Gratuito. E lá vou eu, com meus 10 ou 12 anos, sozinho, ao dentista. Por questões mitológicas, psicológicas, antropológicas e outras tantas, a sala do dentista ficava no segundo andar, em um canto separado de tudo e de todos, tipo castelo do conde drácula, envolto em névoas, isolado do mundo.

Chego cedo e aguardo minha vez. Enquanto isso, dou uma espiada e vejo sentada na cadeira uma menina, que pelos trajes dela e de seus pais à sua volta deveria ser da zona rural, ou da roça, como dizíamos.

Ela está aos gritos, lutando com o dentista. Ele tenta sem nenhum êxito inserir um instrumento enorme, com uma agulha igualmente enorme, na boca da menina. Ela grita, esperneia, bate. Os pais, bem... eles tentam fazer alguma coisa, sem saber ao certo o quê. Por fim, a menina, vitoriosa, consegue fugir da cadeira e sai correndo do consultório. Passa por mim mas não me vê. Eu a vi.

Ouço o dentista dizer uns impropérios. Saem os pais totalmente encabulados. Momentos depois ouço, em meio ao silêncio que se instaurou, do fundo da sala, que naquele momento se tornava uma masmorra reservada para os mais terríveis açoites e inimagináveis torturas: – Próximo!

No momento seguinte, aquele que seria o próximo, EU, estava descendo, ou melhor, quase rolando pelas escadas em direção à saída da escola. Em meu desespero, quase ultrapassei a menina que me antecedeu.

Décadas depois, estou sentado, com a boca aberta, mãos cruzadas, corpo tenso, olhando para um teto branco e infinito. E ainda ouço a pergunta: - Acho que não precisa de anestesia, né?! Lembro da menina.

Consigo sair vivo. Sempre saio vivo. Mas levo mais uma lembrança de dentista. DENTISTA.

Onde estará a menina? Será que ela lembra daquele dia? E se ela nunca mais voltou ao dentista? Imagina! Uma pessoa já madura, afundada em uma cama ou sofá, isolada do mundo, com um único e torturante pensamento: Dentista! Dentista! Dentista! Eu a entenderia.

Mas e se, por outro lado, ela venceu o medo e agora desfila sem traumas e sequelas pelos gabinetes odontológicos do Brasil e do mundo afora? Sorridente, mostra a tudo e a todos as maravilhas que os homens de branco fizeram e fazem em sua boca.
Se a encontrar direi, sem titubear: traidora!

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Papai Noel, me salve!

Em conversa com amigos dias atrás, dei-me conta do tamanho da crise que me envolve.

Não se fala e falou nada além de política durante todo este ano de 2015 (um pouquinho de futebol também, devo reconhecer). Economia em queda, inflação aumentando, dólar lá em cima. Esquemas de corrupção que envolvem políticos e empresários nos mais diversos níveis, escândalos e investigações com nomes criativos: Mensalão, Lava Jato, Zelotes, Petrolão, Pixuleco, My Way, Juízo Final e assim por diante.

Como assim, perguntaria o recém-saído de uma caverna, ou mesmo um etê curioso com a barulheira (e panelaços) que envolve a população e políticos em geral? Como podem as lideranças do país, ocupando presidências as mais variadas, cargos eletivos, membros de comissões, inclusive uma chamada de “ética”, estarem sendo investigados pelos mais diversos delitos? Logo eles que nos representam e que fazem as leis do país? Que deveriam ser exemplo e reserva ética para a nação?

Foram-se os tempos em que pensava-se ensinar moral e civismo por meio de matérias escolares obrigatórias intituladas “Educação, Moral e Cívica”, “Organização Social e Política Brasileira” e “Estudos de Problemas Brasileiros”. Elas não são mais necessárias. Mais do que nunca podem ser conferidos diariamente nos meios de comunicação o tipo de moral, civismo e postura política que nossos representantes têm assumido pragmaticamente. É um show de criatividade e dinamismo!

E, para piorar, lembro-me que lá nos idos do final dos anos 1980 Cazuza decretou que “Meus (nossos) heróis morreram de overdose”. Mesmo Chapolin Colorado, com sua sabedoria e astúcia, não está mais entre nós. E aí, como fica? Como eu fico? Sem políticos para me representar, sem heróis para me defenderem, estou sozinho!

Mas, como estamos em novembro, e dezembro está vindo por aí, lembrei-me, sim, lembrei-me dele, o velhinho bonachão, Papai Noel!!!

Sim, ele não há de me faltar. Afinal, nunca faltou (Embora em alguns anos, devo confessar, tenha deixado uma ponta de decepção). Mas ele sempre vem. O velhinho sempre vem. “Santa Claus is coming to town!”, cantamos todo ano e cantaremos este ano novamente.

Ele trará presentes, música, bebidas, noitadas, encontros e, com sua roupa vermelha e branca impecável, ora no trenó, ora na direção do caminhão da bebida que tem sabor de natal, irá apregoar salvação a todos.

Serei feliz de novo! Esquecerei as roubalheiras, os políticos corruptos, as injustiças, a humilhação sofrida pelo povo pobre. Verei filmes sobre o natal na televisão, assistirei milhões de propagandas na TV oferecendo milhares de presentes. Irei ao shoppings e meus olhos se maravilharão com as luzes e as cores.

Afinal, o sorriso e a bondade do bom velhinho são irresistíveis, não é mesmo?

O que pedirei ao pé do ouvido ao Papai Noel? – Querido Papai Noel, que no ano que vem todo mês seja dezembro!

No Brasil, no meu Brasil, meu último e resistente herói é o Papai Noel. Não restou nenhum outro. Ele me restitui a alegria e orgulho de ser brasileiro!

sábado, 7 de novembro de 2015

Jean e Italo

“Todo o nosso presente era feito de passado”, escreve o moçambicano Mia Couto em um de seus livros. Passado que se reflete em influências recebidas durante a existência e que se materializam no presente.

Dentre essas influências, certamente a leitura é uma das mais intensas. Vamos constituindo uma memória de leituras, algumas conscientes, outras não, que acaba por se tornar critério para escolhas e opções que surgem no decorrer de nossa jornada. Nem sempre temos consciência do processo ou de autores específicos a quem devemos gratidão.

Há dois a quem conscientemente sou devedor. Jean e Italo.

Eles influenciaram minha vida em momentos distintos. Embora diferentes em muitos aspectos, minha vida tornou-se o ponto de contato entre eles. E a partir daí passei a identificar algumas afinidades que partilhavam.

Ambos eram homens tímidos. Evitavam o contato com muitas pessoas, preferindo o silêncio das bibliotecas e o prazer solitário da escrita. No entanto, as exigências impostas ao primeiro, e decorrentes das opções assumidas pelo segundo, os levaram a se tornarem pessoas públicas.

Ambos eram escritores e produziram uma obra volumosa e de grande aceitação.

Ambos morreram prematuramente. Jean, pouco antes de completar 55 anos. Italo cerca de um mês antes de fazer 62.

Jean surgiu em minha adolescência, momento de definições existenciais. Ler sua biografia foi como acender uma luz que direcionou minhas incertezas a um porto seguro. Em seguida, outros de seus escritos trouxeram referências para a auto compreensão e a conexão com aqueles que me cercavam e com o mundo. Sua escrita sóbria, sem pompa, humilde e ao mesmo tempo profunda, tornou-se uma referência contra riscos futuros.

Italo chegou posteriormente, momento final de meus estudos. Consciente de minhas limitações, procurava caminhos e mentores para melhorar a escrita. Lê-lo foi como passar por um banho de elegância, de simplicidade, de exatidão, cada palavra exercendo seu poder e magia em plenitude. Tal estilo era tudo que desejava para meus textos.

Jean e Italo. O primeiro, o reformador e teólogo francês do século XVI. O segundo, o escritor cubano de nascimento, mas italiano de vida e coração, da segunda metade do século XX.

Jean Calvin, conhecido entre nós, brasileiros, como João Calvino e Italo Calvino.

Meus dois Calvinos.

Com eles, posso dizer que meu presente é feito de passado. Influências profundas e mestres presentes.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Aimoré

Acordava cedinho, com a ansiedade espantando o sono e impedindo que meu corpo permanecesse sob as cobertas.

Como era difícil esperar o tempo passar! Até que, enfim, ouvia o carro parar em frente de casa. Saía em disparada para recebê-lo. Depois dele conversar com meus pais e de tomar o café passado na hora no coador de pano, saíamos finalmente.

Meu tio morava em Sorocaba e ia a um rancho próximo a Angatuba para pescar no rio Paranapanema. Como minha casa em Itapetininga ficava no meio do caminho, não havia maiores dificuldades para me levar.

Geralmente ele trazia dois sobrinhos que também moravam em Sorocaba. E nós, três crianças entre os 10 e 12 anos, e ele, ex-pracinha, veterano da Segunda Guerra Mundial, tão diferentes em idade, formação e experiência, nos uníamos em torno da pescaria. Ele, procurando sossego, paz, silêncio; nós, em busca de experiências, do desconhecido, da diversão. Ele, com paciência nos compreendia e ensinava; nós, com perplexidade o admirávamos e aprendíamos.

Às vezes dormíamos no rancho à beira do rio. Feito de madeira, muito simples, com dois beliches, um pequeno fogão e apetrechos de pescaria, o rancho se tornava nosso refúgio, onde nossa imaginação criava asas. Levantar com o nascer do sol, sentir a neblina sobre a água enquanto o barco deslizava suavemente era uma experiência e tanto. Apenas suplantada pela explosão de alegria quando pegávamos um peixe.

E ele, homem solitário, com imagens e sombras de um passado distante mas sempre presente em sua mente e coração, profundas demais para serem verbalizadas, com seu jeito direto e objetivo de agir, nos ensinava, nos corrigia, permitia que crescêssemos à sua sombra.

Na adolescência desejei ser militar. Até prestei concurso para uma escola militar. Com o tempo abandonei essa vocação. Mas a experiência me lembra como ele marcou minha vida.

Anos atrás, quando recebi a notícia de sua morte, fiquei muito triste, ainda mais por não ter podido vê-lo pela última vez em vida. Vida que, com suas muitas obrigações e compromissos, acabou por nos distanciar. Restou o último olhar para seu corpo sem vida.

Ele continuava o mesmo. Feição impassível, séria, com ar de quem viveu muito e viu coisas que um ser humano não precisaria ter visto. Ao dar adeus àquele homem que admirei tanto, e que naquele momento me culpava por não ter revelado a ele tal sentimento, senti, mesmo que ingenuamente, em seu silêncio, o convite para ir pescar ao nascer do sol.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Mateus, o menino que pegou o sol

Manhã bonita de inverno, estou em meu quarto ajeitando algumas coisas e ligando o computador para mais um dia de trabalho. Claudia, minha esposa, igualmente começa sua rotina recolhendo roupas para lavar e deixando o quarto pronto para um novo dia.

Em meio às ações que fazemos quase mecanicamente, Mateus, nosso netinho de um ano e meio entra no quarto. Claro, paramos tudo para dar atenção a ele. Mexe aqui, tira uma coisa do lugar ali, quer sentar à frente do computador. Quando uma criança está presente o mundo para. Pelo menos para os avós.

A janela está aberta e por ela entram o ar fresco da manhã e um raio de sol. Ele cruza boa parte do ambiente indo instalar-se no meio do quarto. Mateus descobre o sol.

Estica a mãozinha até ser tocado pelo feixe de luz. Ri. Retira a mão e a coloca novamente. Misteriosamente o sol some e ressurge. Mateus ri com prazer. Nós, deixando a posição de expectadores, entramos na brincadeira. Brincamos de pegar o sol. Interrompo o raio com a palma da mão aberta e, ao ser iluminada, fecho-a rapidamente. Mostro a mão fechada para Mateus e digo que peguei o sol. Quando abro, decepção, o sol fugiu! Mateus faz o mesmo e ri. Rimos com ele e nos divertimos.

Ficamos um tempo brincando com Mateus de pegar o sol. Sabemos pelas leis da física que isso não é possível. Mateus ainda não sabe. Ele pegou, de fato, o sol. Várias vezes! E isso deu prazer a ele e a nós.

Pegar o sol. Como nós adultos precisamos voltar a fazer isso! Sentir seu calor, ver, em sua extensão, a perfeição de seu percurso, a explosão de cores que ele traz. Brincar de prendê-lo. De guardá-lo para nós. Claro, isso é impossível. Mas o prazer que sentimos, isso sim, é real, muito real. Tão real como as gargalhadas de Mateus.

Nessa manhã de inverno ensolarada nosso netinho nos deu outra lição. Ou melhor, nos convidou novamente para sentirmos os prazeres mínimos, mas belos, da vida. Brincar de pegar o sol. Permitir que o irreal, o desejo, o prazer, o sonho, guiem nossas vidas. Nem que seja por um pouquinho de tempo.

Precisamos disso. Carecemos disso. Obrigado, Mateus, por ter pego o sol!

terça-feira, 16 de junho de 2015

Meu clube preferido

Ele não tem piscina. Não possui sauna, nem campo de futebol, quadras, salão de jogos.

Se quiser dançar, não dá. Não tem salão social.

Meu clube preferido nem tem local fixo.

Mas tem uma coisa importante: não cobra mensalidade e não é preciso pagar joia para participar dele.

O clube aceita todo tipo de pessoa. Nele não há distinção de classe econômica, social ou qualquer outra diferenciação que separe os seres humanos.

O que é fantástico no meu clube preferido são as pessoas. Ah, gente boa toda a vida!

Há todo tipo de gente. O falante, que nos faz rir e quase imediatamente fala coisas sérias. Há os quietos, sempre na deles, quase não falando nada, mas com um brilho lindo nos olhos, aproveitando cada palavra e, quando abrem a boca, sempre surgem contribuições preciosas. Há o estudante, com sugestões eruditas, a fim de discutir uma teoria, uma novidade. Há também a apaixonada por histórias, que nos cativa e nos emociona com seu amor pela contos e causos do povo do interior. Frequenta o clube, claro, o aposentado, que é ativo e cheio de ideias e de vigor. Ah, sim, tem o casal apaixonado, um pelo outro, pela vida e por histórias. Há a articuladora, cheia de contatos, de conhecimento, que nos surpreende a cada momento por aquilo que sabe e que viveu. Há o professor. Há os que vão chegando e nos conquistando com seu jeito meigo e amigo.

O clube tem frequência variada. Por ele transita gente rica, pobre, de antigamente, de hoje e, talvez, até de amanhã. Já estiveram nele Agilulfo, o cavaleiro medieval; Felipe, o filho especial e seus pais; Thoreau, o radical; uma multidão de cegos; a distinta senhora Dalloway; a alagoana Macabéa; uma poetisa anciã; a sofrida dona Lola; a família Gattai; a romântica Bovary. Outros virão.

No clube a gente come e conversa. Nem sempre nessa ordem. Em meio a bolos, pães, café, refrigerante e suco, meras desculpas para nos encontrarmos, compartilhamos ideias, histórias, causos, e, o mais importante, um pouco de nós mesmos. E como é bom a cada encontro pegar um pouco da vida de cada um para mim!

O meu clube preferido completou um aninho de vida. Parabéns para ele, parabéns para nós, parabéns ao clube do livro!

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Aquele sorriso estranho

Dia desses em que voltava no final de tarde início de noite de São Paulo, onde trabalho, para Campinas, onde moro, já dentro da cidade o ônibus fretado seguia seu percurso habitual. Entre viradas, e descida de passageiros, dobradas, e nova descida de passageiros, e retas, com a habitual descida de passageiros, ele entrou na rua Andrade Neves e subiu em direção ao Castelo.

Estava sonolento. Naquela noite havia dormido apenas uma hora, consequência de um texto que deixei para fechar na última hora. Ia meio desatento, afinal, o caminho era o mesmo, as paradas, as mesmas, as descidas, as mesmas.

O ônibus parou no Castelo em frente a uma pequena casa de shows, com uma porta de entrada estreita. Nada de mais. Ele sempre para ali e a casa de shows continua no mesmo lugar. Mas naquela noite foi diferente.

O pessoal começa a descer e olho para fora distraidamente. Vejo ao lado da porta da casa de shows um homem vestido de cangaceiro, com chapéu e tudo, braços cruzados, sorrindo. Tudo bem, ele deve estar recepcionando os clientes e nada como um sorriso para cativar os que chegam, pensei.

Sorrindo para mim. Interrompi o olhar que vagava de um lugar para outro e fixei naquele homem. Ele sorria para mim! Por que para mim? Havia gente andando pela calçada, além daqueles que haviam descido do ônibus. Bastante movimento, bastante gente. Muita gente para ser olhada. Mas ele continuava olhando para mim através da janela do ônibus. Fiquei encabulado, desviei o olhar.

Recolhi o olhar para dentro do ônibus, para o pessoal que continua descendo; olhei o filme que estava acabando, dei uma conferida na bolsa. Alguns segundos depois, tempo suficiente para despistar o cangaceiro, voltei a olhar, como quem não quer nada, para fora pela janela e... ele continuava sorrindo para mim! – Caramba, que cara chato! Quer me deixar sem graça, certamente. E deixou! Não olhei mais. Ele havia vencido a guerra de olhares.

O ônibus começa a se mover lentamente, após desembarcar o pessoal que não via a hora de chegar em casa. Começo a pensar na minha noite, no banho, em comer alguma coisa, no descanso. Mas não resisto, dou uma última e derradeira olhadela para trás. Quero ver meu algoz, o cara que me deixou constrangido. Olho e vejo. Não, não o vejo. O que vejo é a silhueta de um homem, em tamanho natural, feita de papelão, o verso de um cartaz fixado na porta da casa de shows. Certamente ele continua sorrindo.

domingo, 10 de maio de 2015

Mães e o capitalismo

Quanto custa? É caro! É barato! É importado! As peças são originais!

Quanto a empresa paga a hora? Trabalha aos finais de semana? Turno? Hora extra? CLT?

É feito artesanalmente. Você não encontrará nada igual! O valor não está nos componentes, mas na composição.

As regras do capital dominam a sociedade. Nada é de graça. Tudo tem um preço. Se for nosso, mais caro, se for do outro, mais barato.

Com as mães não funciona assim. Não mesmo!

Sabe aquela torta que ela levou horas para fazer, com ingredientes especiais e caros? Aquela torta que os filhos adoram?

Quanto custa? Um “muito obrigado, mãe. Estava uma delícia!”.

Sabe aquela madrugada passada no pronto socorro com a filha febril? Apesar da demora no atendimento, as palavras de tranquilidade e calma, o colo quente para o cochilo enquanto o médico não chama?

Quanto vale a hora/hospital da mãe? Um “que bom que você estava comigo, mãe. Precisava tanto de você!”

Sabe aquelas lições de casa intermináveis, que nenhum filho do mundo tem paciência para fazer? Lá está ela, tentando entender a matéria que faz décadas que não vê, procurando explicar aquilo que talvez o professor não explicou direito. E o filho, que não presta atenção, querendo terminar logo a tarefa para jogar vídeo game.

Quanto custa esse tempo? Um mero “você é a melhor professora do mundo, mãe!”

Sabe aquela roupa que chega em casa depois do jogo de futebol do filhão? Aquela pasta molhada e informe que um dia foi um calção e uma camiseta? O par de meias sujas, fedorentas?

Quanto custa separar essas peças das demais e colocá-las para lavar na opção “roupa do filho muito suja”? Um simples “Valeu, mãezona! A roupa ficou massa!”

Sabe aquele vestido, longo, para a formatura, que a filha não conseguiria viver sem ele? Motivo de suspiros e desespero? Aquele vestido, caríssimo, que custará o sacrifício da economia de alguns meses? Aquele vestido que tornará a filha a moça mais linda da cerimônia?

Sabe quanto custa? “Puxa, mãe, você é a melhor mãe do mundo! Te amo!”

Definitivamente, as mães não sabem nada de capitalismo.

Elas sabem, sim, e são pós-doutoras nisso, de dedicação, entrega, sacrifício, amor, amor, amor.

Filhos, sabem quanto custa um dia das mães?

sexta-feira, 10 de abril de 2015

João

Era para ser Cesário, do meu avô, homenagem de meu pai. Avô que não conheci. Cesário do meu primo, nascido antes de mim. Homenagem de meu tio. Cesário não. Pra que duas homenagens? João Cesário.

João de São João. Não o evangelista. Mas aquele que perdeu a cabeça, ou melhor, que teve a cabeça decepada por ordem de Herodes. João Batista. Vinte e quatro de junho. Inverno, frio. Tempo de pinhão, batata doce, quentão. Quem nasce nesse dia? Joões. Dia de São João Batista. João.

Leonel. Brisola? Ouço a pergunta desde pequeno. Sim, repito desde muito, somos parentes distantes. Mas ele é Leonel Brisola, eu sou João Cesário Leonel. Entenda! Ele, o político importante, tinha Leonel como primeiro nome. Eu, o parente desimportante, tenho o Leonel como sobrenome.

E tem Ferreira. Meio sem importância. O sobrenome composto é estranho. Leonel Ferreira. Por alguma razão a família prioriza o Leonel em detrimento do Ferreira. Isso não teria importância e passaria despercebido não fosse o problemático Sr. Ferreira e Sra. Leonel.

Casados? Como? Possuem sobrenomes diferentes! E aí é que o Ferreira precisa ser explicado. Ele não tem importância, mas dá trabalho. Sim, minha esposa recebeu apenas um sobrenome de minha parte – hoje não precisaria receber nenhum – e escolhemos o Leonel. Eu fiquei com os dois, Leonel Ferreira. Então, quando algum documento é emitido, o dela vem Sra. Leonel e o meu Sr. Ferreira. Em geral a explicação cansa o inquiridor.

João Cesário Leonel Ferreira. Nome oficial, mas quase nunca usado ou proferido. Na infância, ouvir o nome completo ser pronunciado por minha mãe, em tom exclamatório, era certeza de encrenca, se não de uma boa surra. Fora isso, Joãozinho para os familiares quando pequeno, João, para os mesmos familiares, quando já mais crescido. E também para colegas de escolas e amigos de Itapetininga.

A partir de um certo momento, por achar João muito comum, decidi complementá-lo e ao mesmo tempo simplificá-lo: João Leonel. Assim, em um passe de mágica, eliminei os dispensáveis Cesário e Ferreira, que deixam o nome longo demais, e me limitei ao mais importante. O nome herança do pai, e o nome escolha pessoal.

Passo seguinte, resolvi por conta própria priorizar o Leonel assumindo-o como primeiro nome, embora, quando me questionam, cumpro a obrigação de esclarecer que o nome mesmo, o da infância e da família, é João.

Atirador Leonel. Eis a dica que permitiu a mudança. No interior, serviço militar é feito em Tiro de Guerra. E aí, atirador Leonel deu a deixa e a coragem para eu assumir o Leonel. E lá se vão décadas. O atirador ficou para trás, permaneceu o Leonel. No entanto, até hoje, quando meu nome é pronunciado completo, os amigos do Leonel não conseguem ligar pessoa e nome. Fazer o quê. Explico depois.

Devo reconhecer que hoje sinto saudades do João. Saudade que é mitigada com os poucos amigos de antigamente que me chamam assim, e por minha esposa, que resistiu a todos os outros nomes e manteve-se firme ao João.

João, Cesário, Leonel, Ferreira. Meu nome. Minha história.

domingo, 5 de abril de 2015

Ressurreição... hoje

“E por que devo eu continuar arriscando a vida de forma tão perigosa? Encaro a morte praticamente todos os dias. Acham que eu faria isso se não estivesse convencido de que nossa ressurreição está garantida pelo Senhor ressuscitado? É a ressurreição que motiva minhas palavras e ações, a minha vida.” (1 Coríntios15.30-32, A Mensagem).

A ressurreição de Jesus Cristo é um fato histórico. A igreja cristã desde seus primórdios creu, afirmou e reafirmou essa frase. Um dos primeiros documentos de fé da igreja, o Credo Apostólico, afirma: “Creio em Jesus Cristo [...] o qual [...] ressurgiu dos mortos ao terceiro dia”.

A ressurreição dos mortos, segundo os teólogos, une Cristologia (estuda a pessoa e obra de Jesus Cristo), Soteriologia (trata da salvação) e Escatologia (estudo dos últimos tempos e da segunda vinda de Jesus).

A ressurreição de Jesus Cristo baseia-se na afirmação de cristãos que dizem terem visto e ouvido o ressurreto. Por isso mesmo, ela foi e é alvo de críticas por ateus, cientistas e outros, uma vez que restou apenas a tumba vazia e o testemunho de alguns homens e mulheres, que foram tidos como ignorantes submetidos a forte tensão emocional, o que teria produzido visões e audições imaginárias.

A cristandade vive um início de século de tristeza e sangue. Cristãos por todo o mundo passam por sofrimento. Cristãos africanos, cristãos asiáticos, cristãos do Oriente Médio, cristãos nas Américas. Há também os assassinatos de cristãos por grupos radicais. Homens cristãos são retirados de seus lares e locais de trabalho para serem brutalmente decapitados ou queimados até a morte. Mulheres e meninas cristãs são vendidas como escravas. Bebês cristãos têm seus crânios esmagados por bestas inumanas.

Muitos deles são pessoas humildes, pobres, de pouca instrução. Pessoas que lutam para viver, e que tem sido assassinadas sem escrúpulos, cujas mortes são tratadas, em termos políticos, como conflitos entre minorias raciais e religiosas.

A ressurreição pode ser provada? Não, não pode. Mas pode ser vista.

Vejo na morte de cada cristão africano, de cada cristã árabe, de cada criança asiática a ressurreição abrindo as trancas da história e invadindo a realidade humana. Vejo no chão banhado com o sangue dos inocentes o perfume de vidas que se elevam para a presença de Deus. Vejo no choro doído de pais, mães, filhos, irmãos e amigos o introito para as canções de louvor dos cristãos ressuscitados no último dia.

Sim, a ressurreição é um fato histórico. Ela tem sido provada desde o passado mais longínquo até o dia de hoje por pessoas que, por amor a Jesus Cristo, relativizam bens, vida social, conforto, segurança, a própria vida. Por aqueles que entendem que, em certos momentos, muito concretos, é preciso perder a vida para ganhá-la.

Sim, a ressurreição é um fato histórico!

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Túmulos

“... o depositou num túmulo aberto em rocha, onde ainda ninguém havia sido sepultado” (Lucas 23.53).

“abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram” (Mateus 27.52).

Túmulos, sepulcros, são feitos para abrigar corpos sem vida. Parcela de seres humanos que viram encerrada sua trajetória nesta terra, alguns de forma pacífica, tranquila, outros de modo inusitado, violento, inesperado.

Túmulos e cadáveres. Um foi feito para o outro. Um, sem o outro, incompleto, sem proveito, sem sentido.

No entanto, a narrativa evangélica relata um túmulo a espera de um corpo e túmulos que perdem seus corpos.

Com a morte de Jesus é necessário pensar onde seria sepultado. José de Arimateia, discípulo rico do mestre galileu, se prontifica e oferece o túmulo que havia preparado para depositar seu corpo, em um futuro incerto quanto ao tempo, mas certo quanto ao fato.

Um túmulo novo, cheirando bem, limpo, guardando ainda as formas e impressões das mãos vivas de seus construtores. Um túmulo seguramente construído com requinte, luxo de um homem rico, receberá um jovem rabi do norte, pobre, humilde, que em sua jornada por trilhas, estradas e ruas, não havia tido tempo para pensar onde seu corpo de dores descansaria quando a vida enfim lhe fosse tirada. No túmulo do rico seria depositado o corpo do pobre.

Outros túmulos, antigos, semidestruídos, tristes pelo esquecimento, corroídos pelo vento e erosão, expressão externa da ação do tempo ocorrida igualmente nos corpos que os habitaram em tempos idos.

Túmulos novos, recém construídos, belos, alguns imponentes, com a presença integral de seus ocupantes ou ainda guardando resquícios daquilo que foram em vida.

Todos eles são abertos inesperadamente, violados em seu silêncio, em suas trevas, em seu vazio. Perdem seus ocupantes, perdem a razão de ser.
É necessário que um túmulo receba o intruso para que outros túmulos sejam abandonados por seus moradores. Túmulos confusos, espaço ocupado, espaços vazios, não sentido.

Sexta-feira. Cai a tarde. As trevas começam a ocupar espaços, corações, túmulos. Um, violado pela presença não desejada. Outros, tristes pela partida daqueles que lá deveriam permanecer para sempre.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Mãos

São Paulo...

final de tarde...

metrô.

Entro no vagão.

Eu e uma multidão. Vamos espremidos. Como descerei logo, fico voltado para a porta, olhando o concreto escuro e informe que passa rapidamente diante de mim.

Entre um empurrão e outro, uma espremida e outra, vejo deslizarem ao meu lado duas mãos que, ao se alongarem, procuram apoio na porta do vagão. Os corpos ficam para trás. Não consigo vê-los. Apenas as mãos que se projetam ao meu lado e se fixam na porta para manter os corpos equilibrados.
Olho para braços e mãos. Mais para as mãos.

Uma é de uma senhora. A mão é menor, os dedos são delicados. A outra é maior, dedos mais largos. Mão de homem. Mãos que, embora de sexos diferentes, se associam em características comuns. Ambas estão ressecadas, ásperas. A mulher tem as unhas curtas e sem esmalte.

Certamente são mãos que convivem com a louça suja, com roupas por lavar, com a faxina de casa e com o peso da sacola que leva arroz, feijão, macarrão, fubá e outros alimentos básicos que, na falta de um carro, precisam ser carregados do supermercado ou da venda para casa em uma caminhada penosa.

São mãos acostumadas com tijolos, cimento, enxada, escadas e instrumentos que a calejam, fortalecem seus tendões, engrossam sua pele. Mãos que constroem a vida de outros e dão sustento à sua própria.

Mãos que agora precisam aprender a equilibrar o corpo na dança sinuosa do vagão do metrô.

Lembro das mãos de meu pai em minha infância. Mãos gigantes para uma criança. Mãos morenas, de uma pele que, me explicavam, descendia de bugres. Mãos que seguravam minha pequena mão. Mãos que tempos depois apertavam a minha em um cumprimento orgulhoso entre homens. Mãos que nos últimos tempos estavam pálidas por falta de oxigênio.

Mãos que nos alimentavam e nos vestiam. Mãos que lavavam, costuravam, que limpavam a casa e nossos corpos. Mãos que faziam afagos. Mãos multitarefas em uma vida multifacetada. Mãos de minha mãe.

Mãos de Claudia. Que conheço tão bem. Há décadas. Geografia que mapeio, caminhos do coração. Mãos generosas, que expressam concretamente o bem e o amor que habitam seu ser. Mãos que, quando não há nada a ser dito, quando as palavras não são suficientes, ao apertar minha mão dizem tudo.

A porta abre. Desço rapidamente sem tempo de buscar os corpos, as faces, o senhor e a senhora das mãos que contemplava. Mãos que equilibram corpos, mãos que equilibram a vida. Mãos que me lembram de outras mãos, que equilibraram e equilibram minha vida.

terça-feira, 17 de março de 2015

Alice

“Eu preferia estar com câncer”.

Em um momento de abertura de coração, em que a força utilizada para enfrentar a rudeza da doença é canalizada para permitir que os sentimentos mais profundos da alma venham à tona, Alice desaba diante do marido.

O filme Para sempre Alice (título original: Still Alice) narra a história de uma professora universitária, magistralmente interpretada por Julianne Moore, diagnosticada com Alzheimer. O enredo descortina diante do espectadores, de forma sensível, real e tocante o drama dessa mulher, do choque inicial diante da notícia, passando pela constatação da perda gradual da memória, até chegar a um estado semivegetativo.

A perda da memória é atroz para a personagem. Professora e pesquisadora brilhante, seu maior orgulho é a carreira construída a partir da atividade intelectual e do acúmulo de informações em seu cérebro. Agora, as memórias e seu conhecimento acadêmico simplesmente desparecem como bolhas de sabão que estouram no ar.

A opção, se possível fosse, pelo câncer em lugar do Alzheimer, sintetiza sua dor. Afinal, a sua geração, que por aproximação é também a minha, viu a doença, fantasma a assombrar nossos pais, que em virtude do terror causado não era sequer nomeada por muitos, ser, se não vencida, pelo menos domesticada. Atualmente há índices de cura inimaginados a cinquenta anos atrás.

Mas presumo que não é o fato do câncer poder ser curado e o Alzheimer não (pelo menos até hoje), que faz Alice optar o primeiro. Acho, sim, que o câncer, mesmo em suas formas mais agressivas, que produzem dores e angústias que acompanham seus portadores até o último suspiro, não nos tira aquilo que o Alzheimer rouba de nós: nossa memória e, por decorrência, nossa identidade.

É isso que Alice não consegue suportar. Deixar de ser ela mesma. Deixar de ser reconhecida. Deixar de ser Alice. Deixar de reconhecer lugares e pessoas, principalmente pessoas queridas.

Somos o que somos pela identidade que possuímos. Construída pela combinação de genes, de fatores sociais, de experiências psicológicas, de escolhas e tantas outras coisas. Somos seres de memórias e de experiências. Somos memórias e experiências. Ao perde-las nos perdermos. Passamos a ser uma mera mancha neste mundo.

O filme, belo e tocante, nos lembra das limitações e da pequenez humana. O Alzheimer é apenas uma dentre tantas situações que nos lembram disso. Somos todos, mais ou menos, Alice.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Tudo de novo


Todo início de ano sou tomado por um surto de desânimo.

Não dou muita atenção a isso e sigo a vida. Afinal, logo a correria dos compromissos e atividades me fazem esquecer e focar no que vem pela frente.

Este ano, experimentando novamente esse incômodo, resolvi refletir. O que acontece comigo?

Por um lado, sofro com a radical mudança que se dá do dia 25 para o dia 26 de dezembro. Acabam as comemorações natalinas que desde a infância me alegram, seja pelas reuniões familiares, seja pelo significado profundo do nascimento de Jesus. Surgem os preparativos para o ano novo e logo a seguir sou lembrado que o carnaval está chegando.

A entrada de um novo ano não me anima, muito menos o carnaval. Por quê?

A imagem bíblica da criação me ajuda a buscar uma resposta.

Após formar Adão do pó da terra, Deus cria os animais e aves e os traz para que ele os nomeie.

Aí está! Eu me identifico com Adão. Sinto-me o Adão do século XXI!

Imagine a cena. Animais e aves em fila, ordenadamente, esperando o momento em que receberão nomes. Centenas, milhares deles.

Imagine a paciência e a criatividade de Adão. Provavelmente sentado, precisa encontrar nomes para todos animais e aves que aparecem à sua frente. E nem sabemos em que idioma. Ou será que ele aproveitou o momento e, prevendo futuros problemas, criou um dicionário de animais e aves multilíngue?

Claro que o desconto a ser dado a Adão é que ele estava sob o impacto da criação. Tudo era novo, e ele certamente sentia prazer em participar daquele momento. Afinal, apesar do trabalho, ele deve ter ficado orgulhoso de perpetuar seu nome na nomeação de toda a bicharada que povoaria a terra.

Pensando bem, sou mais ou menos Adão. Sou Adão na necessidade de identificar e nomear situações e experiências que se apresentam a mim no ano que chega. E haja paciência e criatividade!

Mas definitivamente não sou Adão, pois, com raras exceções, não estou participando do novo, como o primeiro. Pelo contrário, o novo ano se apresenta invariavelmente com situações antigas, perenes mesmo, que me desafiam a rebatizá-las.

Começar tudo de novo, com a mesma bicharada que se apresenta ano após ano diante de mim esperando receber um novo nome. E eu que a cada ano tenho menos paciência para distribuir nomes, para encontrar novos nomes.

Minha esperança é que recaia um pesado sono sobre mim...