domingo, 20 de abril de 2014

Mulher, porque choras?

Os discípulos conviveram intensamente com Jesus durante seu ministério. Foram ensinados por ele, viram seus milagres, seu poder sobre os demônios, experimentaram sua graça e misericórdia e viram nele a presença divina.

Ao se aproximar a sombra da cruz, entretanto, eles não conseguiram permanecer ao lado do mestre. Alguns dormiram no jardim enquanto Jesus orava. Diante da multidão que procurava Jesus para prendê-lo, fugiram todos. Pedro que, cheio de coragem, o acompanhou de longe, negou a serviçais do sumo-sacerdote que o conhecia. Judas, o traidor, não suportou o remorso e suicidou-se.

Preso à cruz, discípulos distantes, são as mulheres, que o acompanhavam desde a Galileia, que permanecem próximas (Jo 19.25). São elas que, sabendo que o corpo de Jesus seria depositado em um túmulo pertencente a José de Arimateia, postam-se em frente ao túmulo para confirmar o paradeiro do corpo (Mt 27.61).

Maria Madalena, da qual Jesus havia expulsado sete demônios e que o seguiu durante seu ministério (Lc 8.2), estava entre as mulheres que viram a crucificação e se colocaram diante do túmulo.

Na madrugada de domingo ela retorna sozinha ao sepulcro. Ao perceber que a pedra que lacrava a porta foi removida, avisa Pedro e o outro discípulo. Estes vão ao local e confirmam o que ela havia dito. Após inspecionar o túmulo, os discípulos retornam para casa. Ela não.

Ela permanece chorando diante do sepulcro (Jo 20.11). Enquanto chora, olha novamente para dentro do túmulo e vê dois anjos. Eles, então, perguntam a ela: Mulher, por que choras? (Jo 20.13). Em seguida, ela olha para trás e vê Jesus, mas não o reconhece. Ele faz a mesma pergunta: Mulher, por que choras? (Jo 20.15).

Seriam reprimendas? Ela deveria conter o choro, afinal, Jesus estava vivo? Não. Em nenhum momento o choro indica falta de fé, desconfiança, incredulidade. Pelo contrário. O choro é a porta de entrada para a demonstração de fé daquela mulher.

Por que choras? Por que ela não sabe onde está o Senhor, e não consegue viver sem ele.

Por que choras? Por que, contrariamente aos discípulos que retornaram para casa, ela quer permanecer no local de onde Jesus saíra vivo, esperando que ele retorne.

Por que choras? Por que é o choro da ausência que permite a Maria Madalena, ao olhar para o sepulcro vazio, ver algo mais, ver os dois anjos, que os discípulos, apressados, não conseguiram ver.

Por que choras? Por que, ao conversar com Jesus, não consegue reconhecê-lo.

Por que choras? Por que não sabe onde está o corpo, mas tão logo saiba, irá até ele e o levará consigo para cuidar dele.

Por que choras? Por que ainda não ouviu o ressuscitado chamá-la nominalmente.

É o choro que faz a transição entre a experiência dolorosa com o Senhor morto e a maravilhosa realidade do Senhor vivo.

É o choro que revela os sentimentos mais profundos do coração daquele que sofre a ausência do mestre amado.

É o choro que, embora revele a fraqueza humana, ao mesmo tempo demonstra a tenacidade de Maria Madalena de não distanciar-se um milímetro sequer de onde esteve Jesus.

É o choro que permite à Madalena ver o que discípulos apressados não viram.

É o choro que nos leva ao lado de Jesus e abre-nos para a experiência mais profunda do cristianismo: ouvir Jesus chamar-nos pelo nome.

É o choro que permite que passemos por momentos terríveis e cruéis, mas também é o choro que expande o coração, a mente e a alma para a experiência fundante do cristianismo: ver e ouvir o Senhor ressurreto.

Maria Madalena, a mulher outrora possuída por espíritos malignos, agora discípula de Jesus, foi privilegiada por ser o primeiro cristão a ver Jesus ressuscitado. O choro a conduziu a tal experiência.

sábado, 19 de abril de 2014

Trevas

“houve trevas sobre toda a terra” (Mt 27.45).

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46).

“E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito” (Mt 27.50).

“tirando-o do madeiro, envolveu-o num lençol de linho, e o depositou num túmulo aberto em rocha [...] Era o dia da preparação” (Lc 23.53-54).

“trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos com medo dos judeus” (Jo 20.19).

Depois de um período se caminhada com Jesus, para a qual deixaram suas vidas de pescadores, revolucionários, cobradores de impostos etc., a aventura chega ao fim.

Depois de ouvirem e verem coisas maravilhosas e serem inflados pela esperança da chegada de um reino de paz e justiça, a aventura chega ao fim.

Depois de verem o diabo derrotado por Jesus e pessoas libertas, a aventura chega ao fim.

Depois de testemunharem o mestre, sobre o qual depositaram fé e pelo qual se deixaram guiar, ser preso, brutalmente espancado, crucificado e, para o espanto deles, declarar que Deus o havia abandonado, morrer como um criminoso comum, a conclusão dos discípulos é que a aventura realmente chegou ao fim.

Depois de presenciarem o corpo de Jesus ser retirado da cruz e depositado em uma caverna e esta ser selada com uma rocha, eles voltam as costas e seguem, apressados, para se esconderem, temerosos dos judeus. Afinal, a aventura chegou a um triste fim.

Decepcionados, entristecidos, sentindo-se enganados, sem esperança, escondidos de tudo e de todos, os discípulos sentem que as trevas que cobriram a terra quando da morte de Jesus atinge seus corações.

Com a morte de Jesus, a terra volta a ser “sem forma e vazia” e “as trevas retornam sobre a face do abismo”.

Afinal, a aventura chegou ao fim.

O período entre a sexta-feira e o domingo foi o pior momento na vida dos discípulos. Jesus, o Senhor da vida, havia sido vencido pela morte. Sua voz silenciada, seus discursos perdidos no tempo, suas ações transformadas em meras lembranças.

Jesus estava morto. Então, restavam apenas as trevas e o medo.

Medo vivido da sexta até a madrugada do domingo.

Medo de quem olha para o passado e vê desilusão. Medo de quem tenta olhar para o futuro e vê apenas vazio.

Como viver esses dias? Como sobreviver a eles?

A sexta-feira está chegando ao fim, levando consigo o corpo de Jesus, as esperanças dos discípulos e os ecos dos gemidos de dor do universo. O sábado se aproxima, dia longo em que as celebrações judaicas não terão sentido para os seguidores do rabi morto.

Tempo de espera, em que o vazio se expande ameaçando invadir corpos e mentes frágeis demais para resistir.

Trevas.

terça-feira, 15 de abril de 2014

A última conversa

O que dizer àquele que o gerou, que o carregou nos braços, que te deu valores fundamentais para a vida, que, enfim, o constituiu como pessoa e cuidou de você até que conseguisse andar com as próprias pernas e viver por si só?

O que dizer quando ele está ao seu lado, e talvez você nunca mais tenha a oportunidade de lhe dirigir a palavra?

O que dizer ao seu pai, quando ele está agonizando ao seu lado, em um momento em que estão a sós, situação única na vida de pai e filho?

Ele esteve doente por décadas. Cresci vendo-o sofrer. Nos últimos meses piorou e nós, os filhos, resolvemos trazê-lo para perto de mim, visto que minhas duas irmãs moravam em outras cidades.

Minha mãe cuidava dele dia e noite. Ele já estava bem debilitado pela idade e pelo desgaste que a doença, enfisema, além de outras complicações, causaram.

Certo dia, quando eu estava ministrando uma palestra, me chamaram com urgência. Cheguei ao prédio em que meus pais moravam, ao lado de minha casa, e ele estava mal. Muito mal. A ambulância do SAMU foi chamada e o transportou imediatamente para o hospital.

Zoraide, minha irmã que morava em uma cidade próxima, já havia chegado. Então, resolvemos que ela levaria minha mãe de carro ao hospital e eu iria no SAMU acompanhando meu pai.

Foi ali, junto à maca em que ele estava deitado, provavelmente em choque, já sem conseguir falar, respirando com dificuldade, que tivemos nossa última conversa.

Na realidade, não foi uma conversa. Foi um monólogo. Eu falei, ele ouviu. Mas foi o momento mais profundo que tive com meu pai em toda a minha vida. Falei como filho. Falei como homem. Falei como pastor. Mas todas essas facetas de minha vida falaram a mesma coisa: meu amor por ele, minha dificuldade em manifestar esse amor no decorrer de nossas vidas, o desejo de conviver mais com ele, a falta que ele faria para mim, o desejo de vê-lo junto a Deus no momento que se aproximava.

O motorista e seu auxiliar no banco dianteiro provavelmente me ouviram. Talvez tenham achado estranho. Talvez não. Afinal, quantos outros filhos e pais estiveram ali, naquele mesmo lugar em que eu estava? Quantos falaram as mesmas palavras que eles ouviam naquele momento?

Experimentei profunda tristeza durante o trajeto entre o apartamento e o hospital. Naqueles momentos vivenciava, de forma concreta, a limitação e a fragilidade humana. Meu pai partiria em breve e, embora eu estivesse me preparando para sua morte a algum tempo, estava surpreso e despreparado diante da dor que sentia.

Entendi que aquele era o momento da despedida e que talvez não houvesse outra oportunidade. Não o ouvi dizer que me amava, que eu era importante para ele, que eu deveria cuidar de minha mãe etc. Não foi necessário. Eu sabia disso. Embora ele não fosse uma pessoa emotiva e com expressões de carinho, seu amor pela família era um fato. O que importa é que pude dizer ao meu pai tudo que sentia, e eu sabia que o fato dele ter me visto crescer, estudar, casar, ter filhos, possuir uma profissão digna, fazia-o sentir-se orgulhoso.

Ele foi internado em uma unidade de terapia semi-intensiva. No dia seguinte pronunciou algumas palavras e depois não conseguiu mais falar. Dia a dia foi piorando e depois de 20 dias ele faleceu. Foi triste vê-lo morrer em um hospital, longe do lar e sem a presença da família em seus últimos momentos.

Meu pai partiu anos atrás e sinto sua falta. Mas consolo-me por ter podido dizer que o amava. Por ter conseguido ter a última conversa com ele.

sábado, 12 de abril de 2014

Exilado em tempos de eleição

v. 1. Ás margens dos rios da Babilônia,
nós nos assentávamos e chorávamos,
lembrando-nos de Sião.
v. 2. Nos salgueiros que lá havia,
pendurávamos as nossa harpas,
v. 3. pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam canções,
e os nossos opressores, que fôssemos alegres, dizendo:
Entoai-nos algum dos cânticos de Sião.
v. 4. Como, porém, haveríamos de entoar o canto do Senhor
em terra estranha? (Sl 137.1-4).

O salmo 137 foi escrito quando Israel estava exilado na Babilônia. Esteve por lá 70 anos até que retornou à Palestina.

Os primeiros versículos transcritos acima retratam o espírito de apatia e tristeza que enchia corações e faces daquela gente.

No entanto, os vencedores, além de opressores (v. 3) eram irônicos. Eles pediam que os exilados fossem alegres e cantassem músicas de sua terra (v. 3), músicas que eram cantatas em Jerusalém.

Tais músicas eram, se não na totalidade, pelo menos em sua maior parte ligadas ao templo de Jerusalém e às cerimônias religiosas lá praticadas. Então, a resposta dada é: é impossível cantar, uma vez que estamos longe de nossa terra, de nossa cidade, de nosso templo, portanto, dos locais onde cultuávamos nosso Deus e cantávamos para ele.

Proponho uma atualização do salmo. Se não de forma contextual, pelo menos na experiência dos sentimentos que ele expressa.
Sou um exilado. Exilado em minha própria terra.

Nela choro e, nas praças, sento-me e penduro meu violão nos bancos e árvores. Estou mudo.

Lembro-me de um Brasil que não conheci. Lembro-me de um Brasil que dizem ter sido diferente. Lembro-me de um Brasil onde as pessoas eram alegres, onde havia trabalho, saúde, escola e lazer para todos. Lembro-me de um Brasil onde crianças, velhos, pobres, negros e mulheres eram tratados dignamente.

Lembro e me entristeço, pois estou exilado em meu próprio país.

Mas aqueles que me fizeram cativo em minha própria terra, os políticos, não me querem ver triste. Eles me oprimem, mas ainda assim pedem para que eu seja alegre, que cante músicas que falam de um Brasil que não conheci.

Pedem que eu me dirija à urnas feliz da vida, crendo em mudanças, acreditando em promessas de palanques, em propaganda política...

Os políticos querem que eu sinta uma alegria patriótica em votar neles. Mas não consigo.

Como posso cantar, como posso votar, quando sou exilado em meu próprio país? Como posso votar com alegria, quando aqueles em que voto perpetrarão meu exílio e me oprimirão no primeiro dia de seus mandatos?

No meu país, que se transformou em terra estranha para mim, onde sou oprimido e tratado como cativo, não consigo mais cantar, não consigo mais sonhar, não consigo mais votar.

Espaços da alma 1



São espaços sagrados, não religiosos, embora às vezes também o sejam.

Há um universo em seu interior. Desde as primeiras ideias surgidas na humanidade até os pensamentos mais (im) prováveis e (im)possíveis de realização.

Estou falando de bibliotecas.

Elas propiciam oportunidades de encontro com outras pessoas tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão iguais a nós. Mesmo que não entendamos plenamente o que dizem, comungamos com os autores da conspiração por construir um mundo melhor, mais justo, mais humano. Quando isso não é possível, nos associamos às denúncias que lançam ao papel, seja em manifestos, em textos acadêmicos ou em ficções.

Quero falar de um desses encontros.

Ele se deu quando eu era estudante do então primeiro grau, quinta ou sexta série. Estava com onze ou doze anos. Escola pública.
Havia uma biblioteca que ficava... no porão. Isso mesmo, já naquela época, final dos anos setenta do século passado, esse era o espaço reservado para a fonte de conhecimento humano e lugar de pesquisa, quase nunca frequentado por alunos e professores.

Eu a encontrei. Devo reconhecer que possivelmente pelo fato de que havia uma mesa de ping-pong no porão da escola. Então, entre uma raquetada e outra, notei aquela sala meio esquecida no subsolo da humanidade.

Entrei. Olhei... olhei... e, de repente, ah, aquilo sim eu queria ler! A coleção de clássicos da literatura juvenil, publicada pela Editora Abril em cinquenta volumes. Era muita coisa, mas muita coisa mesmo para um menino de onze anos!

Mas encarei o desafio. Havia títulos como A ilha do tesouro, Conde de Monte Cristo, Os três mosqueteiros, Ben-Hur, Hobin Hood, Ivanhoé, Robson Crusoé, Vinte mil léguas submarinas, Volta ao mundo em oitenta dias, Rei Artur e seus cavaleiros, O corsário negro, O máscara de ferro, Carlos Magno e seus cavaleiros, A ilha misteriosa.

Li todos.

Em uma época onde não havia ideia de que existiria um dia a internet, em que canais de televisão paga eram um sonho de consumo inimaginável, em que as tevês coloridas ainda eram uma novidade, foram esses livros que se constituíram em porta de entrada para o mundo de fantasias. Gastei horas, dias, meses lendo.

Para a secretária da biblioteca foi um espanto que um aluno pegasse um livro após o outro, sem intervalos, com um apetite insaciável. Para meus pais, era estranho que o filho adolescente ficasse tanto tempo parado, quieto, lendo livros. Para mim, era uma revolução. Em meu cérebro e alma havia águas em tumulto, mundos submergindo, mundos surgindo com a força de uma explosão nuclear. Eu havia descoberto a literatura e o prazer de ler.

Nunca mais deixei os livros. Minhas leituras se tornaram heterodoxas, indo dos gibis à teses doutorais. Como professor, leio por obrigação profissional, mas também por prazer. Mas a imagem de piratas, mosqueteiros, arqueiros, reis, cavaleiros nunca mais deixaram minha mente. Mesmo diante de textos complexos, difíceis de serem entendidos, percebo às vezes a sombra de uma capa, a forma de uma espada, o vento do mar, a voz de um rei lembrando-me que a leitura traz mistérios e prazeres que inundam a alma.