quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O pequeno no presépio

Gosto de presépios. Em um canto do meu coração estão memórias de infância ligadas à tia Laida e seu presépio. Gostava de vê-la retirar da caixa o menino Jesus deitado na manjedoura, a vaquinha, os anjos, os reis magos, Maria e José.

Em tempos de final de ano, o presépio é a ilustração mais clara e vívida que o inusitado, o inesperado, o imprevisto acontece. Afinal, é natal.

Uma criança nasce. É mais do que uma criança. É Deus feito gente. Gente pequenina, um pedacinho adorável de gente – muito bem ilustrado no bebezinho no presépio. Carente de colo, do leite materno, de carinho, assustado diante de um mundo que veio salvar.

Por trás daquele bebe se ocultam tensões. Um Deus desejoso de resgatar os seres humanos assume a absoluta tristeza de perder o filho amado para amar os perdidos. A divindade, toda poderosa, se limita na quase total negação de si mesma, tornando-se dependente de seres humanos para nascer, crescer, aprender a vida e até para morrer.

Na vida daquele bebê se manifesta a alegria. Alegria pela chegada do filho inesperado. A plenitude contida no sorriso do bebê simplesmente por estar no colo dos pais. A explosão da existência humana materializada em Maria e José ao ouvirem o pequenino pronunciar pela primeira vez "mamãe", "papai".

Natal é tempo do imprevisto, do imponderado acontecerem. Por isso, acho que o tempo de votos serem feitos, da revisão de vida se dar, das promessas acontecerem não é a entrada do novo ano. Não. É na véspera de natal que nosso coração deve ser tocado. Aos pés do presépio, da cruz, da árvore de natal, de qualquer lugar. Qualquer lugar que nos conduza a Jesus Cristo, menino Deus, graça manifesta, luz para nossas trevas, poesia para nosso coração, silêncio que acalma o tumulto das vozes. Emanuel, Deus conosco!

A vida é dura, cruel, injusta? Sim. Certamente. Mas o natal nos lembra que o fraco vence o forte, que a esperança vence o abatimento, que a mágoa é superada pelo perdão. Jesus, o Deus feito gente, morreu injustamente, mas reviveu. A vida vence a morte.

Quando olhamos no presépio o bebê deitado nas palhas, tranquilo, somos convidados a uma relação com Deus fundamentada na fé, na confiança de que nossas debilidades não são impedimentos para a vida, mas sim o caminho pelo qual Deus está acostumado a caminhar.

A criança que provavelmente muitos duvidaram que viveria, afinal, nasceu em uma estrebaria, enrolado em trapos e deitado em uma manjedoura – como vemos no presépio – não só viveu, mas trouxe vida a todos nós. Do pouco Deus fez muito, o inusitado se transformou na forma preferida de Deus agir. Afinal, é natal!

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Natal e crianças... esquecidas

Dezembro é, acima de tudo, o mês das crianças. Elas já estão em férias, com tempo (muito tempo!) livre para brincar. Brincam em casa, na casa de amiguinhos, na rua (quando é possível), no clube, no parque etc. E, além de tudo, eles aguardam o natal. Tempo de receber presentes encomendados meses atrás, tempo de viagens, tempo de rever primos e atualizar brincadeiras e traquinagens.

Natal é o tempo em que nós, adultos, nos tornamos crianças. Seja por brincarmos com os brinquedos que demos aos filhos. Seja por lembrarmos de natais passados em que sentíamos a mesma alegria que vemos nos rostinhos dos pequenos. Ou seja por lembrarmos o início de tudo com o menino Jesus.

As crianças são o centro do natal. Lembramos delas, nos alegramos com elas. E elas dão sentido às nossas vidas.

Este natal será diferente.

Gabriel, 2 anos, dia 12 de dezembro, no Rio de Janeiro; Marina, 2 anos, em São Bernardo do Campo, SP; e Clarisse, de 1 ano e 11 meses, em Belo Horizonte, ambas no dia 17 de dezembro.

Crianças que morreram abandonadas dentro de carros.

Não há como negar que este será o ano das crianças esquecidas. Esquecidas dentro de carros. Crianças que morreram trancadas por adultos dentro de carros.

Como isso pode acontecer? Como podemos (sim, no plural, nós, nossa sociedade) esquecer nossas crianças, aquelas que geramos ou que cuidamos com amor, dentro do carro e sair para a rotina do dia a dia?

Como é possível que aqueles que são o centro de nossa vida e nos dão razão de viver sejam simplesmente esquecidos, como um objeto, como uma bolsa, um casaco, um livro, dentro de um carro?

Estamos doentes. E se precisamos de um sinal de que a sociedade está doente, o sinal foi dado: esquecemos nossas crianças! E passaremos o natal pensando naqueles que se foram sem antes terem tido o prazer de viver apenas um pouquinho mais.

Os evangelhos relatam que Jesus, embora bebê humilde, de pais pobres, nascido em um lugar destinado a animais, não foi esquecido. Pastores foram visitá-lo, magos enigmáticos vindos do Oriente o presentearam, Os velhos Simeão e Ana saudaram sua chegada. E sua mãe esteve com ele até o final. Viu-o ser crucificado.

Não é possível que no natal lembremos do menino Jesus e nos esqueçamos de nossas crianças, dentro de carros. Não é possível celebrarmos o nascimento do salvador e nos perdermos na morte de nossas crianças.

Neste natal alguns presentes não serão entregues. Não haverá substitutos para eles.

Neste natal, lembremos do menino Jesus e, por favor, lembremos de nossas crianças!

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Cadê a vaga?

O bebê, entre desconfiado e tímido, olha para nós por cima dos ombros da avó. Parece-me que somente ele detecta nossa presença. Adultos dão atenção a outras coisas. Bebês e crianças são atraídos pelos detalhes que escapam aos grandes.

Segunda-feira, shopping, cinema. Entramos no estacionamento em forma de prédio. Embora estivéssemos no meio da tarde, de segunda-feira, não encontramos vaga. Roda pra cá, roda pra lá, e nada. Não consegui reter comigo o pensamento: - Definitivamente não sou uma pessoa urbana! Ir ao shopping, na segunda-feira à tarde, e não encontrar uma vaga de estacionamento, é quase demais para mim!

Havia outros carros na mesma situação. Consolo? Claro que não! Cada um com seu problema! De repente, uma esperança apocalíptica! Vemos pessoas caminhando entre os carros. Estão entrando ou saindo? Torcemos para que estejam indo embora. Vemos cruzarem as fileiras de carros até chegarem à frente de onde estamos, quase parados.

E aí surge uma cena inusitada. Uma mulher e uma senhora, possivelmente mãe e avó, e esta carrega a netinha no colo. Elas seguem rentes aos carros. E nós atrás. E elas caminham, e caminham, e caminham. E nós atrás.

Elas não são nenhuma estrela de Belém, mas nos conduzem, em meio à penumbra do estacionamento, nutrindo nossa fé, rumo à vaga tão desejada.
Dirijo o carro vagarosamente, a uma distância segura, para não assustar nossas guias e, ao mesmo tempo, não permitir que nenhum motorista espertinho chegue à vaga antes de nós.

E vou devagarinho. E elas andam. Nunca chegam! Estamos quase atravessando o estacionamento. Apago o farol do carro para não assustá-las, mas o pisca, sinalizando à direita com sua luz amarela, continua acesso. É meu sinal para os intrusos que aquela vaga, que surgirá, tenho fé, já é minha.

Seguimos em nossa peregrinação percorrendo o estacionamento. A mãe, a vó, o bebezinho, e eu, Claudia e João Guilherme no carro. É a romaria com destino à sacrossanta vaga. Será que a mãe e a avó não perceberam nossa presença? Não sei, é provável que nos tenham visto. Mas se viram, não deram sinal. Afinal, duas mulheres sendo seguidas por um carro com farol baixo no estacionamento do shopping é uma coisa estranha, se não ameaçadora. É melhor ignorar. Mas o bebê não. Ele vai olhando para trás, para nós. O que pensará?

Finalmente, quase na saída do estacionamento, elas param. E eu também. Enquanto aguardamos a liberação da vaga, Claudia e João Guilherme saem apressadamente para comprar os ingressos para a sessão de cinema. Eu continuo aguardando.

Calmamente a mãe desliga o alarme do carro, a avó ajeita o bebê no banco de trás, com todo o cuidado, a mãe abre o porta-malas, distribui nele os pacotes, fecha, toma seu lugar na direção e liga o carro. Dá ré, sem pressa. E sai.

E eu entro! Ajeito o carro na vaga e, enquanto saio apressadamente em direção ao cinema, penso pela última vez no bebê, em seu olhar fixo em nós. Será que ele entende o mundo estranho em que vivemos?

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O dia em que mudei de nome

Os nomes nos dão identidade. Ou melhor, dão a identidade que outros julgam que temos. Afinal, são nossos pais que nos nomeiam, a maior parte das vezes por nos acharem parecidos com um parente, por desejarem homenagear um amigo ou, o que é pior, por idolatrarem um jogador de futebol ou uma atriz de novela.

Nomes definem seres e mesmo objetos. Não é raro prédios, lojas, carros, etc. receberem nomes. É a maneira de seus criadores definirem suas criações. Com isso, os nomes dão personalidade a objetos destituídos dela.

Já perceberam como é irritante, e às vezes humilhante, quando pessoas esquecem nosso nome e, na tentativa de identificar-nos, dizem: - Ei, “coisa”! Como assim, “coisa”?

Neste final de ano recebi a honra de ser patrono dos formandos de teologia do Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas. Turma João Cesário Leonel Ferreira.

Fiquei pensativo, achei estranho. Primeiro, ver meu nome coletivizado. Depois, os motivos que levaram um grupo de alunos a escolher uma pessoa, um nome para representá-los daqui para a frente. Ao final, fiquei muito feliz e lisonjeado por me escolherem. Embora, talvez maior motivo de meu embaraço, não veja razões suficientes para tal homenagem, além da amizade que nutri por esses estudantes, e eles por mim, que, acho, os impediu de pensar mais claramente na escolha do nome.

Turma João Cesário Leonel Ferreira. Eles escolheram meu nome para batizar a turma. Eles levarão meu nome. Sim, é verdade. Mas maior verdade é o fato de que, além disso, eles participaram da mudança de meu nome. Daqui para a frente serei chamado de Turma 2011-2014 do Seminário Presbiteriano do Sul.

Eu não os escolhi, como não escolhi meu nome, mas eles me escolheram, e com isso mudaram meu nome e minha vida. Daqui para a frente, trarei esses alunos e queridos amigos junto de mim. Eles têm meu nome. Eu tenho a amizade deles.
Espero vê-los se desenvolverem, crescerem em seus ministérios, terem bonitas experiências com Deus, passarem por profundas experiências com suas ovelhas. Crescerem como gente e como pastores. Com isso, cresço com eles. O nome deles em mim se agiganta, me envolve, me enobrece.

Meu nome? Turma 2011-2014.

domingo, 30 de novembro de 2014

Encontros de final de ano

Saímos para o almoço de domingo. Dezembro às portas, um clima de natal no ar, pessoas alegres... Muito alegres.

Fomos a uma churrascaria. Chegamos relativamente cedo e conseguimos uma mesa rapidamente.

O garçom nos conduziu à nossa mesa localizada na lateral do restaurante, ao fundo. Ao chegarmos, estranhamos o barulho. Uma família que sentava-se quase ao mesmo tempo que nós, ao nosso lado, também comentou sobre o ruído.

- Val... Val... Val...

Havia uma reunião familiar bem junto a nós. Várias mesas reunidas, tios, tias, primos, avós, avôs, netinhos. Todos estavam lá. Todos!

Não conheço esse pessoal, mas sei que uma delas chama-se Val. - Val... Val... Val...

Um homem chamava incessantemente a tal da Val. Mas ele precisava saber que não havia necessidade que todo o restaurante tomasse conhecimento de que ele precisava falar com a Val.

Risadas, cumprimentos, um tal de gente chegando, tapinhas nas costas, elogios (até imagino as mulheres: “nossa, como você está linda! Emagreceu?”; homens: olha o tamanho da barriga, tomando todas, ô meu!”).

E o tal que não se cansava: - Val... Val... Val...

Depois de um pouco de observação (sim, não havia como não observar a algazarra), Claudia concluiu que não era uma mera reunião familiar; era, de fato, a comemoração do batizado de uma menininha vestida como princesa: roupinha branca, tiara, etc. E soubemos mais: a Val era a mãe da criança!
Alegria de uns (eles), tristeza de outros (nós). Eu, Claudia e João Guilherme praticamente não conseguíamos ouvir um ao outro, tamanho o barulho que a moçada do batismo fazia.

Por fim, acabou a festança. Novos tapinhas nas costas, elogios, falação. – Val... Val... Val... E o pessoal vai embora.

Continuamos nosso almoço. Agora conseguíamos conversar. Sobre o quê? Ah, não sabe? Sobre a Val e seu pessoal, claro!

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O natal chegou em janeiro

Natal é sinônimo de presentes. Para aqueles que têm dinheiro, o prazer de dar. Para aqueles que não o tem, a esperança de receber.

Natal é sinônimo de festa. Comida, bebida, encontro com familiares e amigos queridos, encontro com outros não tão queridos assim...

Natal é sinônimo de cristandade. Missas, cultos, celebrações, espírito natalino/cristão no ar, músicas especiais.

Natal é sinônimo de dezembro. Entra novembro e o clima começa a mudar. As lojas se enfeitam, as propagandas na TV estimulam as compras, os shoppings se iluminam. Em dezembro, está tudo pronto. O mês vive em função do natal.

Natal é sinônimo de criança. Afinal a história toda começa com um bebezinho que chega inesperadamente em um lar palestino. Maria fica grávida ainda virgem, José procura entender o que está acontecendo. A criança muda suas vidas. Definitivamente.

Mateus chegou em janeiro. E com ele iniciamos formalmente nosso natal, em janeiro. Alegria de pais, tios, avós.

Chegou envolto em preocupações. Gestação difícil, meses de tensão. Mas ao ver a luz, o vemos perfeito. Complicações fazem de seus primeiros dois meses de vida um constante ir e vir de casa para hospitais. Consultas, pronto-socorro, internações. Sofremos todos. Mas bastava um sorriso, um soninho em nosso colo para nos fortalecer.

É o primeiro natal que eu e Claudia passamos como avós. Experiência especial. Vermos nosso sangue se projetando para o futuro dá um sentido especial à vida. Concretiza a sensação da existência que se estende para além de nós.

Mateus trouxe o natal para janeiro. E o projetou para os meses seguintes. Afinal, a saúde que estabilizou, os quilos ganhos, os primeiros dentinhos, a primeira gatinhada, configuram suas pequenas/grandes conquistas. E mostram como da fraqueza surge a força, a coragem, a persistência.

Estamos próximos do natal. Duas crianças se encontrarão. Mateus, que nos trouxe alegria, e o menino Jesus, que trouxe a salvação. Duas crianças tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximas. Elas serão apresentadas. Tenho certeza que se darão muito bem.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Meus amigos livros

Sempre nutri uma paixão quase irresistível por livros.

Quando estudante, gastava praticamente tudo o que tinha (infelizmente era pouco) com livros. Enquanto amigos iam ao cinema, ao shopping, compravam roupas... eu comprava livros.

Mais tarde, já profissional, vários colegas investiam em roupas de grife, em restaurantes caros etc. Eu? Continuava comprando livros.
Com o tempo, comecei a ter crise de consciência, potencializada pelas opiniões de alguns que me cercavam: por que comprar tantos livros, se certamente não lerei todos? Quantos livros eu já li dentre os que possuo? Por que continuar comprando livros?

Embora agoniado, nunca me dei por vencido. Continuei comprando livros. Em certos períodos mais, em outros menos. Mas sempre ligado aos livros.

Tempos atrás racionalizei algo que já tinha intuído a muito tempo. Livros são como amigos. Gostamos de tê-los por perto. Ao lê-los, sentimos prazer, alegria, somos enriquecidos. Mas mesmo quando não os lemos, eles continuam, como os amigos, ao nosso lado, disponíveis, prontos a uma intervenção quando chamados.

Há, de fato, em minha biblioteca livros que nunca li. Mas isso não os faz desnecessários ou mau investimento. Enquanto esperam ser abertos e sorvidos, eles continuam, em seu silêncio, dizendo-me: - Estou aqui. Obrigado por me comprar. Quando precisar, qualquer que seja a hora, qualquer que seja o estado da tua alma, basta abri-me e conversaremos. Você me lerá, eu te lerei, e aprofundaremos nossa amizade.

E eu, o que respondo? Concordo respeitosamente. Olho para meus livros, aqueles que já li várias vezes, e aqueles que ainda não li e sinto-me confortado. Sei que há pessoas que julgam que os livros me fazem perder espaço em minha casa, sem proveito, principalmente aqueles que nunca li ou mesmo abri. Mas eu sei que eles aguardam o momento certo, a situação adequada para se revelarem a mim. Eu os respeito, eles me respeitam. Nutrimos um sentimento de gratidão mútua e convivemos harmoniosamente.

Hoje não sinto crise nenhuma por ter livros que ainda não li. São meus companheiros, meus amigos, que considero e admiro. Sinto-me privilegiado e tenho o maior orgulho e prazer em poder levá-los comigo durante a vida. Meus amigos livros.

Olha o sorvete!

Manhã de inverno na fria Itapetininga.

João Guilherme, a prima e duas amiguinhas insistem em ir à pista de skate e, por fim, cedo aos pedidos e vamos todos para lá. Além do frio, o tempo está úmido pela chuva que caiu durante a noite. Sento encolhido em um canto buscando esconder-me do vento e as crianças brincam.

Enquanto olho desatento para as crianças e outros dois meninos em suas manobras, vejo à distância um sorveteiro com seu carrinho se dirigindo para a pista. Claro, ele viu as crianças e resolveu dar uma investida. Com os meus não conseguirá nada. Mesmo que peçam. Está muito frio!

Começo a navegar pela internet com o celular. Quando levanto os olhos, eis que o sorveteiro está sentado em um banco e os dois meninos que já estavam na pista estão sentados ao lado dele. E chupando sorvete!

Surpreendi-me, não apenas com a venda bem sucedida, mas principalmente com o fato de que os dois meninos travavam uma conversa animada com o sorveteiro. Pensei: serão vizinhos, conhecidos, parentes? Pode ser. Ou então se conheceram naquele momento. Momento de descansar da caminhada, de interromper as manobras, de sentar e, sem pressa, conversar. Fiquei curioso com o tema do bate papo.
Estava longe e não conseguia ouvir nada. Mas o que uma pessoa de idade, um sorveteiro, teria para falar a dois meninos skatistas? Não faço a mínima ideia. Mas eles conversavam de forma prazerosa.

Fui tocado pela cena. Nela não havia velho e criança. Sorveteiro e skatista. Pessoas não desempenhavam papeis, como é comum em nossa sociedade. Havia, sim, seres humanos trocando experiências, aprendendo uns com os outros, falando desavergonhadamente e sem pressa. Curtindo a venda dos sorvetes, curtindo chupar sorvetes, curtindo uma manhã fria do inverno itapetiningano.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Minha cidade invizível

“[...] a cidade não conta o seu passado, ele o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras [...]” (Italo Calvino. As cidades invisíveis, p. 14-15).

A casa da rua São Vicente de Paula, simples, alugada, mas com um quintal enorme onde havia um pessegueiro e uma goiabeira, com seus frutos que eram comidos no pé, caso das goiabas, e que eram requisitados por minha mãe para fazer doce, caso dos pêssegos. A goiabeira era minha preferida. Além dos frutos, eu e meus primos fazíamos nela cabanas que, invariavelmente, não resistiam à primeira chuva.

A praça da Santa Casa, imensa, cheia de árvores, onde meus pais levavam a mim e minhas irmãs para passear e correr.

A escola Adherbal de Paula Ferreira, onde estudei os primeiros anos com os amigos Egon, Bene, Gilberto e outros, com nossas conversas secretas, a azaração com as meninas, as brincadeiras no intervalo, o inspetor de alunos sempre na bronca.

A casa da tia Laida e tio Gê que, como caçula e portador de síndrome de Down, após a morte dos pais foi criado por ela. Tio Peco passando por lá todas as tardes, cheio de histórias. O China, conhecido como Gaúcho, amigo da família e quebra galho para todas as horas, que vivia trajado como sulino sem nunca lá ter morado. Os serões dos tios contando histórias da fazenda onde foram criados: mula sem cabeça, saci, da caipora, alegrias e medos para nós crianças.

O campinho de futebol atrás do Centro de Saúde. Os bons de bola. Os ruins de bola. Os maiores, formando o primeirinho. Nós, os menores, jogávamos no segundinho. Mamoro, o japonês bom de bola e de briga. Arnaldinho, o Tarzan, apelido em tom de gozação por ser magrinho. Serginho, amigão de aprontações. Zequinha, amigo boa praça. Marcão e Irineu, mais velhos, parceiros. O primeiro, zagueirão desengonçado. O segundo, rápido, às vezes acelerava e esquecia a bola. Tuta, fininho, muito bom de bola. Talvez o melhor de todos. Zizo, que se tornou jogador profissional, grande inspiração para todos nós.

As caçadas a passinhos com estilingue. Invariavelmente voltávamos de mãos vazias. E quando um infeliz conseguia acertar uma avezinha havia uma consternação geral. As saídas com os amigos para roubar frutas nos quintais alheios. Os passeios de bicicleta pela cidade.

As matinês nos cines São Pedro e Olana. As moedinhas contadas para comprar bala chita. Assistir Tarzan, Os Dez Mandamentos, King Kong, Mazzaropi.

Essa é a minha cidade. Hoje, mais invisível do que visível, para utilizar a imagem de Italo Calvino. A Itapetininga que conheci existe parcialmente, assim como desaparece aos poucos. Alguns lugares simplesmente não existem mais. No lugar do campinho, um ginásio de esportes; a casa em que morei na rua Quintino Bocaiúva foi demolida; vários casarões históricos vieram abaixo – um, pelo menos, para dar lugar a um estacionamento. A cidade ficou mais feia. As praças quase abandonadas. O comércio do centro da cidade, antes cheio de lojas chiques onde rapazes, moças, senhores e senhoras da elite Itapetiningana faziam compras foi tomado pelo comércio popular e pelas lojas de 1,99.

Mas o que importa? O importante é que, quando para lá retorno, em cada canto, em cada prédio, vejo a “minha cidade”. Cidade invisível e, dessa forma, a minha cidade. O que vejo outros não veem. O que conto da minha cidade muitos não compreendem. Para que a minha cidade exista é necessário tempo, o tempo que traz a saudade, o tempo que idealiza lugares, cria sentimentos, torna eventos corriqueiros em grandes momentos que são guardados na memória.

A minha cidade invisível surge do apagamento da cidade real. Embora ela lá esteja, com tijolos, concreto e asfalto, é a cidade de minha memória, de minhas lembranças, de meus afetos que existe realmente para mim e dentro de mim. Por essa razão, quando vou a Itapetininga faço questão de andar pelas ruas e parar em alguns lugares permitindo que a realidade se dissolva e a minha cidade surja, trazendo de volta a essência do meu ser e alimentando minha alma.



segunda-feira, 5 de maio de 2014

Cleise, Cinthia, Claudia. Celebração da vida

O pai, morreu de uma fatalidade quando Claudia, a caçula dos cinco irmãos, tinha apenas cinco anos.

A mãe, vendo-se sozinha com as crianças, precisou mudar. De Londrina, onde trabalhou como enfermeira, para Tietê, onde estavam familiares. De Tietê para Itapetininga, buscando uma vida melhor.

Criou com dificuldade os filhos, que precisaram trabalhar desde jovenzinhos para ajudar com as despesas da casa. Cleise, a mais velha, sempre que podia comprava roupas para vestir melhor os irmãos.

Vida de lutas e privações. Os casamentos vieram, e agora cada uma lutava para constituir sua família.

Hoje são jovens avós.

Todo ano elas reúnem-se para celebrar seus aniversários. Saem, apenas as três, para lanchar. Como presente, a aniversariante é dispensada de pagar a conta.

Como acontece em reuniões como essa, há muitas recordações e memórias familiares. O tema poderia facilmente ser os sofrimentos da infância, as penúrias passadas, o trauma com a morte prematura do pai, a dor ao verem a jovem mãe sofrendo, a incompreensão de muitas pessoas, etc., etc., etc. Isso certamente as levaria para o caminho da tristeza e da amargura.

Mas não com elas. Não com Cleise, Cinthia e Claudia. Elas se recordam, sim, dos tempos difíceis, mas como motivo de gratidão a Deus por ter dado forças para elas superarem as dificuldades. Há, acima de tudo, histórias alegres, piadas, causos, risos. Muitos risos, mas muitos risos mesmo!

Cleise, Cinthia e Claudia têm um histórico de lutas e de dificuldades desde a infância e poderiam fazer disso o centro e o tema de suas vidas. Mas resolveram que não seria assim. Resolveram olhar para as coisas belas da vida, dar atenção às surpresas do dia a dia. Resolveram ver no trabalho, nas amizades, na família, na fé motivos de alegria e de prazer para a existência. Resolveram ver no aniversário de cada uma delas razão para um encontro onde festejam a alegria de se pertencerem como irmãs. Uma verdadeira celebração da vida!

domingo, 20 de abril de 2014

Mulher, porque choras?

Os discípulos conviveram intensamente com Jesus durante seu ministério. Foram ensinados por ele, viram seus milagres, seu poder sobre os demônios, experimentaram sua graça e misericórdia e viram nele a presença divina.

Ao se aproximar a sombra da cruz, entretanto, eles não conseguiram permanecer ao lado do mestre. Alguns dormiram no jardim enquanto Jesus orava. Diante da multidão que procurava Jesus para prendê-lo, fugiram todos. Pedro que, cheio de coragem, o acompanhou de longe, negou a serviçais do sumo-sacerdote que o conhecia. Judas, o traidor, não suportou o remorso e suicidou-se.

Preso à cruz, discípulos distantes, são as mulheres, que o acompanhavam desde a Galileia, que permanecem próximas (Jo 19.25). São elas que, sabendo que o corpo de Jesus seria depositado em um túmulo pertencente a José de Arimateia, postam-se em frente ao túmulo para confirmar o paradeiro do corpo (Mt 27.61).

Maria Madalena, da qual Jesus havia expulsado sete demônios e que o seguiu durante seu ministério (Lc 8.2), estava entre as mulheres que viram a crucificação e se colocaram diante do túmulo.

Na madrugada de domingo ela retorna sozinha ao sepulcro. Ao perceber que a pedra que lacrava a porta foi removida, avisa Pedro e o outro discípulo. Estes vão ao local e confirmam o que ela havia dito. Após inspecionar o túmulo, os discípulos retornam para casa. Ela não.

Ela permanece chorando diante do sepulcro (Jo 20.11). Enquanto chora, olha novamente para dentro do túmulo e vê dois anjos. Eles, então, perguntam a ela: Mulher, por que choras? (Jo 20.13). Em seguida, ela olha para trás e vê Jesus, mas não o reconhece. Ele faz a mesma pergunta: Mulher, por que choras? (Jo 20.15).

Seriam reprimendas? Ela deveria conter o choro, afinal, Jesus estava vivo? Não. Em nenhum momento o choro indica falta de fé, desconfiança, incredulidade. Pelo contrário. O choro é a porta de entrada para a demonstração de fé daquela mulher.

Por que choras? Por que ela não sabe onde está o Senhor, e não consegue viver sem ele.

Por que choras? Por que, contrariamente aos discípulos que retornaram para casa, ela quer permanecer no local de onde Jesus saíra vivo, esperando que ele retorne.

Por que choras? Por que é o choro da ausência que permite a Maria Madalena, ao olhar para o sepulcro vazio, ver algo mais, ver os dois anjos, que os discípulos, apressados, não conseguiram ver.

Por que choras? Por que, ao conversar com Jesus, não consegue reconhecê-lo.

Por que choras? Por que não sabe onde está o corpo, mas tão logo saiba, irá até ele e o levará consigo para cuidar dele.

Por que choras? Por que ainda não ouviu o ressuscitado chamá-la nominalmente.

É o choro que faz a transição entre a experiência dolorosa com o Senhor morto e a maravilhosa realidade do Senhor vivo.

É o choro que revela os sentimentos mais profundos do coração daquele que sofre a ausência do mestre amado.

É o choro que, embora revele a fraqueza humana, ao mesmo tempo demonstra a tenacidade de Maria Madalena de não distanciar-se um milímetro sequer de onde esteve Jesus.

É o choro que permite à Madalena ver o que discípulos apressados não viram.

É o choro que nos leva ao lado de Jesus e abre-nos para a experiência mais profunda do cristianismo: ouvir Jesus chamar-nos pelo nome.

É o choro que permite que passemos por momentos terríveis e cruéis, mas também é o choro que expande o coração, a mente e a alma para a experiência fundante do cristianismo: ver e ouvir o Senhor ressurreto.

Maria Madalena, a mulher outrora possuída por espíritos malignos, agora discípula de Jesus, foi privilegiada por ser o primeiro cristão a ver Jesus ressuscitado. O choro a conduziu a tal experiência.

sábado, 19 de abril de 2014

Trevas

“houve trevas sobre toda a terra” (Mt 27.45).

“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46).

“E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito” (Mt 27.50).

“tirando-o do madeiro, envolveu-o num lençol de linho, e o depositou num túmulo aberto em rocha [...] Era o dia da preparação” (Lc 23.53-54).

“trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos com medo dos judeus” (Jo 20.19).

Depois de um período se caminhada com Jesus, para a qual deixaram suas vidas de pescadores, revolucionários, cobradores de impostos etc., a aventura chega ao fim.

Depois de ouvirem e verem coisas maravilhosas e serem inflados pela esperança da chegada de um reino de paz e justiça, a aventura chega ao fim.

Depois de verem o diabo derrotado por Jesus e pessoas libertas, a aventura chega ao fim.

Depois de testemunharem o mestre, sobre o qual depositaram fé e pelo qual se deixaram guiar, ser preso, brutalmente espancado, crucificado e, para o espanto deles, declarar que Deus o havia abandonado, morrer como um criminoso comum, a conclusão dos discípulos é que a aventura realmente chegou ao fim.

Depois de presenciarem o corpo de Jesus ser retirado da cruz e depositado em uma caverna e esta ser selada com uma rocha, eles voltam as costas e seguem, apressados, para se esconderem, temerosos dos judeus. Afinal, a aventura chegou a um triste fim.

Decepcionados, entristecidos, sentindo-se enganados, sem esperança, escondidos de tudo e de todos, os discípulos sentem que as trevas que cobriram a terra quando da morte de Jesus atinge seus corações.

Com a morte de Jesus, a terra volta a ser “sem forma e vazia” e “as trevas retornam sobre a face do abismo”.

Afinal, a aventura chegou ao fim.

O período entre a sexta-feira e o domingo foi o pior momento na vida dos discípulos. Jesus, o Senhor da vida, havia sido vencido pela morte. Sua voz silenciada, seus discursos perdidos no tempo, suas ações transformadas em meras lembranças.

Jesus estava morto. Então, restavam apenas as trevas e o medo.

Medo vivido da sexta até a madrugada do domingo.

Medo de quem olha para o passado e vê desilusão. Medo de quem tenta olhar para o futuro e vê apenas vazio.

Como viver esses dias? Como sobreviver a eles?

A sexta-feira está chegando ao fim, levando consigo o corpo de Jesus, as esperanças dos discípulos e os ecos dos gemidos de dor do universo. O sábado se aproxima, dia longo em que as celebrações judaicas não terão sentido para os seguidores do rabi morto.

Tempo de espera, em que o vazio se expande ameaçando invadir corpos e mentes frágeis demais para resistir.

Trevas.

terça-feira, 15 de abril de 2014

A última conversa

O que dizer àquele que o gerou, que o carregou nos braços, que te deu valores fundamentais para a vida, que, enfim, o constituiu como pessoa e cuidou de você até que conseguisse andar com as próprias pernas e viver por si só?

O que dizer quando ele está ao seu lado, e talvez você nunca mais tenha a oportunidade de lhe dirigir a palavra?

O que dizer ao seu pai, quando ele está agonizando ao seu lado, em um momento em que estão a sós, situação única na vida de pai e filho?

Ele esteve doente por décadas. Cresci vendo-o sofrer. Nos últimos meses piorou e nós, os filhos, resolvemos trazê-lo para perto de mim, visto que minhas duas irmãs moravam em outras cidades.

Minha mãe cuidava dele dia e noite. Ele já estava bem debilitado pela idade e pelo desgaste que a doença, enfisema, além de outras complicações, causaram.

Certo dia, quando eu estava ministrando uma palestra, me chamaram com urgência. Cheguei ao prédio em que meus pais moravam, ao lado de minha casa, e ele estava mal. Muito mal. A ambulância do SAMU foi chamada e o transportou imediatamente para o hospital.

Zoraide, minha irmã que morava em uma cidade próxima, já havia chegado. Então, resolvemos que ela levaria minha mãe de carro ao hospital e eu iria no SAMU acompanhando meu pai.

Foi ali, junto à maca em que ele estava deitado, provavelmente em choque, já sem conseguir falar, respirando com dificuldade, que tivemos nossa última conversa.

Na realidade, não foi uma conversa. Foi um monólogo. Eu falei, ele ouviu. Mas foi o momento mais profundo que tive com meu pai em toda a minha vida. Falei como filho. Falei como homem. Falei como pastor. Mas todas essas facetas de minha vida falaram a mesma coisa: meu amor por ele, minha dificuldade em manifestar esse amor no decorrer de nossas vidas, o desejo de conviver mais com ele, a falta que ele faria para mim, o desejo de vê-lo junto a Deus no momento que se aproximava.

O motorista e seu auxiliar no banco dianteiro provavelmente me ouviram. Talvez tenham achado estranho. Talvez não. Afinal, quantos outros filhos e pais estiveram ali, naquele mesmo lugar em que eu estava? Quantos falaram as mesmas palavras que eles ouviam naquele momento?

Experimentei profunda tristeza durante o trajeto entre o apartamento e o hospital. Naqueles momentos vivenciava, de forma concreta, a limitação e a fragilidade humana. Meu pai partiria em breve e, embora eu estivesse me preparando para sua morte a algum tempo, estava surpreso e despreparado diante da dor que sentia.

Entendi que aquele era o momento da despedida e que talvez não houvesse outra oportunidade. Não o ouvi dizer que me amava, que eu era importante para ele, que eu deveria cuidar de minha mãe etc. Não foi necessário. Eu sabia disso. Embora ele não fosse uma pessoa emotiva e com expressões de carinho, seu amor pela família era um fato. O que importa é que pude dizer ao meu pai tudo que sentia, e eu sabia que o fato dele ter me visto crescer, estudar, casar, ter filhos, possuir uma profissão digna, fazia-o sentir-se orgulhoso.

Ele foi internado em uma unidade de terapia semi-intensiva. No dia seguinte pronunciou algumas palavras e depois não conseguiu mais falar. Dia a dia foi piorando e depois de 20 dias ele faleceu. Foi triste vê-lo morrer em um hospital, longe do lar e sem a presença da família em seus últimos momentos.

Meu pai partiu anos atrás e sinto sua falta. Mas consolo-me por ter podido dizer que o amava. Por ter conseguido ter a última conversa com ele.

sábado, 12 de abril de 2014

Exilado em tempos de eleição

v. 1. Ás margens dos rios da Babilônia,
nós nos assentávamos e chorávamos,
lembrando-nos de Sião.
v. 2. Nos salgueiros que lá havia,
pendurávamos as nossa harpas,
v. 3. pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam canções,
e os nossos opressores, que fôssemos alegres, dizendo:
Entoai-nos algum dos cânticos de Sião.
v. 4. Como, porém, haveríamos de entoar o canto do Senhor
em terra estranha? (Sl 137.1-4).

O salmo 137 foi escrito quando Israel estava exilado na Babilônia. Esteve por lá 70 anos até que retornou à Palestina.

Os primeiros versículos transcritos acima retratam o espírito de apatia e tristeza que enchia corações e faces daquela gente.

No entanto, os vencedores, além de opressores (v. 3) eram irônicos. Eles pediam que os exilados fossem alegres e cantassem músicas de sua terra (v. 3), músicas que eram cantatas em Jerusalém.

Tais músicas eram, se não na totalidade, pelo menos em sua maior parte ligadas ao templo de Jerusalém e às cerimônias religiosas lá praticadas. Então, a resposta dada é: é impossível cantar, uma vez que estamos longe de nossa terra, de nossa cidade, de nosso templo, portanto, dos locais onde cultuávamos nosso Deus e cantávamos para ele.

Proponho uma atualização do salmo. Se não de forma contextual, pelo menos na experiência dos sentimentos que ele expressa.
Sou um exilado. Exilado em minha própria terra.

Nela choro e, nas praças, sento-me e penduro meu violão nos bancos e árvores. Estou mudo.

Lembro-me de um Brasil que não conheci. Lembro-me de um Brasil que dizem ter sido diferente. Lembro-me de um Brasil onde as pessoas eram alegres, onde havia trabalho, saúde, escola e lazer para todos. Lembro-me de um Brasil onde crianças, velhos, pobres, negros e mulheres eram tratados dignamente.

Lembro e me entristeço, pois estou exilado em meu próprio país.

Mas aqueles que me fizeram cativo em minha própria terra, os políticos, não me querem ver triste. Eles me oprimem, mas ainda assim pedem para que eu seja alegre, que cante músicas que falam de um Brasil que não conheci.

Pedem que eu me dirija à urnas feliz da vida, crendo em mudanças, acreditando em promessas de palanques, em propaganda política...

Os políticos querem que eu sinta uma alegria patriótica em votar neles. Mas não consigo.

Como posso cantar, como posso votar, quando sou exilado em meu próprio país? Como posso votar com alegria, quando aqueles em que voto perpetrarão meu exílio e me oprimirão no primeiro dia de seus mandatos?

No meu país, que se transformou em terra estranha para mim, onde sou oprimido e tratado como cativo, não consigo mais cantar, não consigo mais sonhar, não consigo mais votar.

Espaços da alma 1



São espaços sagrados, não religiosos, embora às vezes também o sejam.

Há um universo em seu interior. Desde as primeiras ideias surgidas na humanidade até os pensamentos mais (im) prováveis e (im)possíveis de realização.

Estou falando de bibliotecas.

Elas propiciam oportunidades de encontro com outras pessoas tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão iguais a nós. Mesmo que não entendamos plenamente o que dizem, comungamos com os autores da conspiração por construir um mundo melhor, mais justo, mais humano. Quando isso não é possível, nos associamos às denúncias que lançam ao papel, seja em manifestos, em textos acadêmicos ou em ficções.

Quero falar de um desses encontros.

Ele se deu quando eu era estudante do então primeiro grau, quinta ou sexta série. Estava com onze ou doze anos. Escola pública.
Havia uma biblioteca que ficava... no porão. Isso mesmo, já naquela época, final dos anos setenta do século passado, esse era o espaço reservado para a fonte de conhecimento humano e lugar de pesquisa, quase nunca frequentado por alunos e professores.

Eu a encontrei. Devo reconhecer que possivelmente pelo fato de que havia uma mesa de ping-pong no porão da escola. Então, entre uma raquetada e outra, notei aquela sala meio esquecida no subsolo da humanidade.

Entrei. Olhei... olhei... e, de repente, ah, aquilo sim eu queria ler! A coleção de clássicos da literatura juvenil, publicada pela Editora Abril em cinquenta volumes. Era muita coisa, mas muita coisa mesmo para um menino de onze anos!

Mas encarei o desafio. Havia títulos como A ilha do tesouro, Conde de Monte Cristo, Os três mosqueteiros, Ben-Hur, Hobin Hood, Ivanhoé, Robson Crusoé, Vinte mil léguas submarinas, Volta ao mundo em oitenta dias, Rei Artur e seus cavaleiros, O corsário negro, O máscara de ferro, Carlos Magno e seus cavaleiros, A ilha misteriosa.

Li todos.

Em uma época onde não havia ideia de que existiria um dia a internet, em que canais de televisão paga eram um sonho de consumo inimaginável, em que as tevês coloridas ainda eram uma novidade, foram esses livros que se constituíram em porta de entrada para o mundo de fantasias. Gastei horas, dias, meses lendo.

Para a secretária da biblioteca foi um espanto que um aluno pegasse um livro após o outro, sem intervalos, com um apetite insaciável. Para meus pais, era estranho que o filho adolescente ficasse tanto tempo parado, quieto, lendo livros. Para mim, era uma revolução. Em meu cérebro e alma havia águas em tumulto, mundos submergindo, mundos surgindo com a força de uma explosão nuclear. Eu havia descoberto a literatura e o prazer de ler.

Nunca mais deixei os livros. Minhas leituras se tornaram heterodoxas, indo dos gibis à teses doutorais. Como professor, leio por obrigação profissional, mas também por prazer. Mas a imagem de piratas, mosqueteiros, arqueiros, reis, cavaleiros nunca mais deixaram minha mente. Mesmo diante de textos complexos, difíceis de serem entendidos, percebo às vezes a sombra de uma capa, a forma de uma espada, o vento do mar, a voz de um rei lembrando-me que a leitura traz mistérios e prazeres que inundam a alma.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Água da vida

Tempo de preparativos.

Cachorros no canil.

Quarto pintado. Não uma pintura profissional, mas o que foi possível fazer.

Móveis, alguns comprados, outros presentes de pessoas queridas.

Roupas novas, mas também usadas por outros que já utilizam números maiores.

A bolsa. Escolhida a dedo. Com a figura de um cavalinho, como ela queria.

E lá vamos nós.

Uma. Duas. Três vezes.

Telefonemas, mensagens, carinho.

Uma densa nuvem de afeto a envolve.

Ainda não.

Dor... Alívio... dor mais forte... alívio... dor intensa...

E a bolsa.

- Minha bolsa estourou!

Surpresa, susto, seguidos de risos de alívio.

A cama molhada.

O líquido saindo aos borbulhões.

Água da vida!

Vida chegando.

Ele está às portas!



Para Melina e Mateus.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

No meu tempo...

A gente pensa que nunca vai chegar.

A gente até que tenta se adaptar ao novos tempos.

A gente tenta, inclusive, negar.

Mas o fato é que chega um momento na vida em que começamos a usar a expressão “No meu tempo...”

E ela se torna uma companheira constante, quase um vício.

Então, assumo que finalmente chegou a minha hora de dizer: “No meu tempo...”

Neste momento penso em meu passado religioso.

Entrei para o movimento evangélico no final dos anos 1970, ainda adolescente. E nesse tempo, no “Meu tempo...”

... pastor evangélico era, em geral, pobre. Mas respeitado, confiável, honesto, conhecedor da Bíblia. Nas pequenas cidades era contado entre as pessoas mais cultas.

... apóstolo era Mateus, Paulo, Pedro.

... cantávamos com a mesma alegria hinos e corinhos. Estes eram feitos por gente crente e piedosa, sem ambições artísticas, e sem cobrar por shows.

... havia diferença entre as denominações evangélicas, mas havia igualmente respeito, fraternidade, amor até. Em minha cidade no interior de São Paulo, vi mais de uma vez as igrejas presbiterianas, a Batista, a Metodista, a Assembleia de Deus e a Igreja do Evangelho Quadrangular se unirem para realizar cruzadas evangelísticas.

... havia consciência, principalmente entre os jovens, de que a missão da igreja era fazer discípulos, e que, para tanto, precisávamos sair para o mundo.

... aprendemos com o pastor e teólogo batista Russel Shedd que os cultos nas igrejas não deveriam visar o evangelismo, mas sim o ensino da Palavra, com o objetivo de edificar e instruir os cristãos.


... tentávamos desenvolver uma teologia e uma prática cristã contextualizada, autóctone, não importada do primeiro mundo econômico e teológico.

... tínhamos alegria de não mais depender de missionários estrangeiros e de seu dinheiro. Éramos igrejas pobres mas orgulhosas de viver por nós mesmos.

... não fazíamos propaganda de nossos pastores, chamando pessoas para ouvi-los. Entendíamos que o papel deles era nos ensinar e o nosso proclamar o evangelho aos nossos amigos e conhecidos.

... a doutrina era algo doméstico que aprendíamos e que nos alegrava, mas não era considerada uma bandeira e uma arma com as quais deveríamos travar batalhas com cristãos de outras denominações. A doutrina nos ensinava a adorar a Deus e a amar o próximo.

... havia reuniões de oração antes dos cultos e durante a semana. Os cristãos tinham convicção de que a oração era parte essencial da vida cristã.

“No meu tempo...” a igreja evangélica era menor, sem poder político, mas mais evangélica, mais piedosa, mais humilde, mais alegre, mais missionária e mais acolhedora.

... “No meu tempo”.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Meu cocô voltou!

Uma manhã dessas, sem maiores atrativos, estava trabalhando em meu quarto transformado em escritório quando João Guilherme, meu filho de oito anos entra, vai para o banheiro e fecha a porta. Vi tudo com o canto dos olhos, concentrado que estava na tela do computador.

Menos de um minuto depois ele volta, com uma cara assustada e afirma: - meu cocô voltou!

Deixo o que estava fazendo, ainda sem entender direito o que ele disse e pergunto: - como assim, filho?

- Meu cocô voltou, pai!

- Isso é impossível, João Guilherme, cocô não volta.

- Mas meu cocô voltou, pai, insistiu. O cocô de ontem, que entupiu o vaso, voltou!

De fato, no dia anterior, nesse mesmo vaso, João Guilherme havia tido uma diarreia violenta. Ele chamou a mim e a Claudia para socorrê-lo. A privada, que já não estava bem das pernas, não havia levado seu cocô. Ele ficou tão impressionado que quando entramos no banheiro ele estava em pé no vaso sanitário, talvez com medo de um transbordamento seguido de uma inundação... de cocô.

Intrigado com a questão que desafiava tanto a física quanto a gravidade, fui com ele até o vaso e ele apontou triunfante: - tá vendo, pai? O cocô voltou!

Olhei para a triste cena e, realmente, o vaso estava cheio.

Meio sem graça, ainda que consolado pelo fato de que minha opinião estava correta, que cocô não volta como se fosse um fantasma de mau gosto, ou como uma comida que não caiu bem, expliquei que o problema não era que o cocô dele voltou, mas que o cocô que EU havia feito pela manhã não tinha ido.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Olha o velhinho!

Eu e Claudia, minha esposa, somos bem diferentes. Esse é um dos aspectos que me atrai nela.

Costumo dizer que a síntese de nossas personalidades pode ser ilustrada em uma fila de espera. Em um banco, por exemplo. Vou para ela com um livro e saio dela com algumas páginas lidas. Claudia não. Ela vai sozinha para a fila. Mas, ao deixá-la, conversou com todo mundo, brincou com vários, contou piadas, trocou cartões, fez amizades. Assim é Claudia.

Claudia invariavelmente está de bom humor. Sempre está disposta a encontrar motivo de riso em qualquer circunstância. Procura ver algum aspecto positivo mesmo nas piores situações.

Final de ano, fomos ao supermercado. Se pudesse não iria. Prefiro a tranquilidade de minha casa, assistindo TV ou lendo um livro. Nesse dia não foi possível.

Como era de se esperar, parece que a cidade toda estava fazendo compras. E aí, os inevitáveis choques entre carrinhos, os esbarrões com a multidão, as latas caindo das prateleiras, os funcionários correndo de um lado para outro...

Estamos na seção de hortifrúti. Enquanto fico estacionado em um canto, cuidando do carrinho, com cara de paisagem, Claudia percorre com desenvoltura os corredores escolhendo um alface aqui, pegando umas batatas ali, lembrando das bananas que estão na outra banca.

Quando Claudia vem a mim trazendo vários produtos, ouvimos uma voz perguntando se o carrinho é nosso. Ao nos voltarmos vemos um rapaz que aponta para um carrinho vazio ao lado. Estranho.

Estranho um rapaz fazendo compras sozinho. Isso acontece, mas é incomum. Talvez ele esteja ali por obrigação, mesmo constrangido, não acostumado àquela bagunça. Estranho um carrinho abandonado, sozinho. Estará disponível? Ou então alguém o deixou no canto para fazer compras para em seguida colocá-las nele?

Quando eu ia responder a pergunta, racionalizando sobre as possibilidades do carrinho estar livre ou esperando seu dono, Claudia foi mais rápida. Com seu senso de humor, comenta: - está livre ou é de algum velhinho? - Acho que está livre.

O rapaz, meio indeciso, pega o carrinho, não sem antes dar uma olhada ao redor para se garantir, e sai. Quando dá os primeiros passos, dando as costas para nós, Claudia dispara: - Olha o velhinho!

O moço abaixa a cabeça e acelera o passo, temeroso de ser pego em flagrante.

Olho para Claudia e ela está rindo aos montes.

Essa é a minha esposa.