quinta-feira, 8 de maio de 2014

Minha cidade invizível

“[...] a cidade não conta o seu passado, ele o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras [...]” (Italo Calvino. As cidades invisíveis, p. 14-15).

A casa da rua São Vicente de Paula, simples, alugada, mas com um quintal enorme onde havia um pessegueiro e uma goiabeira, com seus frutos que eram comidos no pé, caso das goiabas, e que eram requisitados por minha mãe para fazer doce, caso dos pêssegos. A goiabeira era minha preferida. Além dos frutos, eu e meus primos fazíamos nela cabanas que, invariavelmente, não resistiam à primeira chuva.

A praça da Santa Casa, imensa, cheia de árvores, onde meus pais levavam a mim e minhas irmãs para passear e correr.

A escola Adherbal de Paula Ferreira, onde estudei os primeiros anos com os amigos Egon, Bene, Gilberto e outros, com nossas conversas secretas, a azaração com as meninas, as brincadeiras no intervalo, o inspetor de alunos sempre na bronca.

A casa da tia Laida e tio Gê que, como caçula e portador de síndrome de Down, após a morte dos pais foi criado por ela. Tio Peco passando por lá todas as tardes, cheio de histórias. O China, conhecido como Gaúcho, amigo da família e quebra galho para todas as horas, que vivia trajado como sulino sem nunca lá ter morado. Os serões dos tios contando histórias da fazenda onde foram criados: mula sem cabeça, saci, da caipora, alegrias e medos para nós crianças.

O campinho de futebol atrás do Centro de Saúde. Os bons de bola. Os ruins de bola. Os maiores, formando o primeirinho. Nós, os menores, jogávamos no segundinho. Mamoro, o japonês bom de bola e de briga. Arnaldinho, o Tarzan, apelido em tom de gozação por ser magrinho. Serginho, amigão de aprontações. Zequinha, amigo boa praça. Marcão e Irineu, mais velhos, parceiros. O primeiro, zagueirão desengonçado. O segundo, rápido, às vezes acelerava e esquecia a bola. Tuta, fininho, muito bom de bola. Talvez o melhor de todos. Zizo, que se tornou jogador profissional, grande inspiração para todos nós.

As caçadas a passinhos com estilingue. Invariavelmente voltávamos de mãos vazias. E quando um infeliz conseguia acertar uma avezinha havia uma consternação geral. As saídas com os amigos para roubar frutas nos quintais alheios. Os passeios de bicicleta pela cidade.

As matinês nos cines São Pedro e Olana. As moedinhas contadas para comprar bala chita. Assistir Tarzan, Os Dez Mandamentos, King Kong, Mazzaropi.

Essa é a minha cidade. Hoje, mais invisível do que visível, para utilizar a imagem de Italo Calvino. A Itapetininga que conheci existe parcialmente, assim como desaparece aos poucos. Alguns lugares simplesmente não existem mais. No lugar do campinho, um ginásio de esportes; a casa em que morei na rua Quintino Bocaiúva foi demolida; vários casarões históricos vieram abaixo – um, pelo menos, para dar lugar a um estacionamento. A cidade ficou mais feia. As praças quase abandonadas. O comércio do centro da cidade, antes cheio de lojas chiques onde rapazes, moças, senhores e senhoras da elite Itapetiningana faziam compras foi tomado pelo comércio popular e pelas lojas de 1,99.

Mas o que importa? O importante é que, quando para lá retorno, em cada canto, em cada prédio, vejo a “minha cidade”. Cidade invisível e, dessa forma, a minha cidade. O que vejo outros não veem. O que conto da minha cidade muitos não compreendem. Para que a minha cidade exista é necessário tempo, o tempo que traz a saudade, o tempo que idealiza lugares, cria sentimentos, torna eventos corriqueiros em grandes momentos que são guardados na memória.

A minha cidade invisível surge do apagamento da cidade real. Embora ela lá esteja, com tijolos, concreto e asfalto, é a cidade de minha memória, de minhas lembranças, de meus afetos que existe realmente para mim e dentro de mim. Por essa razão, quando vou a Itapetininga faço questão de andar pelas ruas e parar em alguns lugares permitindo que a realidade se dissolva e a minha cidade surja, trazendo de volta a essência do meu ser e alimentando minha alma.



segunda-feira, 5 de maio de 2014

Cleise, Cinthia, Claudia. Celebração da vida

O pai, morreu de uma fatalidade quando Claudia, a caçula dos cinco irmãos, tinha apenas cinco anos.

A mãe, vendo-se sozinha com as crianças, precisou mudar. De Londrina, onde trabalhou como enfermeira, para Tietê, onde estavam familiares. De Tietê para Itapetininga, buscando uma vida melhor.

Criou com dificuldade os filhos, que precisaram trabalhar desde jovenzinhos para ajudar com as despesas da casa. Cleise, a mais velha, sempre que podia comprava roupas para vestir melhor os irmãos.

Vida de lutas e privações. Os casamentos vieram, e agora cada uma lutava para constituir sua família.

Hoje são jovens avós.

Todo ano elas reúnem-se para celebrar seus aniversários. Saem, apenas as três, para lanchar. Como presente, a aniversariante é dispensada de pagar a conta.

Como acontece em reuniões como essa, há muitas recordações e memórias familiares. O tema poderia facilmente ser os sofrimentos da infância, as penúrias passadas, o trauma com a morte prematura do pai, a dor ao verem a jovem mãe sofrendo, a incompreensão de muitas pessoas, etc., etc., etc. Isso certamente as levaria para o caminho da tristeza e da amargura.

Mas não com elas. Não com Cleise, Cinthia e Claudia. Elas se recordam, sim, dos tempos difíceis, mas como motivo de gratidão a Deus por ter dado forças para elas superarem as dificuldades. Há, acima de tudo, histórias alegres, piadas, causos, risos. Muitos risos, mas muitos risos mesmo!

Cleise, Cinthia e Claudia têm um histórico de lutas e de dificuldades desde a infância e poderiam fazer disso o centro e o tema de suas vidas. Mas resolveram que não seria assim. Resolveram olhar para as coisas belas da vida, dar atenção às surpresas do dia a dia. Resolveram ver no trabalho, nas amizades, na família, na fé motivos de alegria e de prazer para a existência. Resolveram ver no aniversário de cada uma delas razão para um encontro onde festejam a alegria de se pertencerem como irmãs. Uma verdadeira celebração da vida!