sábado, 26 de outubro de 2013

Quando cresce...

No início do casamento eu e Claudia moramos por quatro anos em Joinville, SC. Foram anos marcantes, com muita felicidade e algumas lutas.

Começo de vida a dois, início de vida profissional, nova cidade, novos relacionamentos.

Santa Catarina é um estado lindíssimo. Por um lado, um dos litorais mais belos do Brasil, incluindo a fascinante e encantadora Floripa. De outro, as cidades de forte influência alemã, como Blumenau, Brusque, Pomerode e a própria Joinville. Se contar que, mais para o interior, já no planalto, há as cidades que surgiram sob influência gaúcha.

E como casal jovem que foi criado no interior de São Paulo, sentimos diferenças culturais. Hábitos alimentares, a visão do Brasil a partir do Sul, o alemão sendo falado com naturalidade nas ruas e comércio por pessoas idosas, os programas de televisão produzidos na região, a forma mais direta de relacionamentos.

Nesse contexto, tivemos vários e queridos amigos que participaram de um momento especial de nossa vida: o nascimento de nosso primeiro filho, Timóteo.

Preferimos que ele nascesse em Itapetininga, SP, onde se encontravam nossos familiares. Passados alguns dias, retornamos para Joinville. Como é natural, começamos a receber visitas para saudar a chegada do novo membro da família.

Em um desses dias, um casal amigo foi conhecer Timóteo. Depois de cumprimentos e um bate-papo inicial, fomos para o quarto do nenê. Os amigos postaram-se diante do berço onde Timóteo dormia. Ela olhou... olhou... fixou um olhar clínico na criança e, virando-se para os orgulhosos pais, disparou a pérola: - Dizem que quando cresce a criança fica bonita.
Eu e Claudia trocamos olhares... mas não dissemos nada, tomados de perplexidade. Na realidade, a frase completa era: “Quando a criança é muito feia, dizem que ao crescer fica bonita”. Com sua delicadeza paquidérmica, nossa amiga havia nos poupado de ouvir o ditado por completo.

Apesar do choque, continuamos amigos. Com o passar do tempo, viemos a saber que os catarinenses, pelo menos aqueles com quem convivíamos naquela época e lugar, eram diretos nos relacionamentos, às vezes rudes. Tentamos nos adaptar a isso.

O tempo passou e incumbiu-se de mostrar que pelo menos em um aspecto nossa amiga tinha razão: Timóteo tornou-se uma criança linda, e hoje é um homem muito bonito.

Mas nunca mais esquecemos o ditado popular (ou impopular???).

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Cartas de felicidade

Anos atrás tomava os chamados “ônibus de linha” para ir de Campinas, onde moro, a São Paulo, onde trabalho. Ia de rodoviária a rodoviária.

No final do ano lá estavam eles no Terminal Tietê. Mesmo passando rapidamente, sempre em cima da hora de tomar o ônibus, fitava-os até onde o pescoço permitia e o ângulo de visão alcançava.

No outro dia, no outro ano, lá estavam eles. Sentados, sempre tendo diante de si pessoas procurando ajuda. Às vezes até fila havia.
Não sei se eram de alguma ONG, se eram voluntários. Mas gastavam horas escrevendo cartas. Certamente eram pessoas analfabetas que se postavam diante deles. Provavelmente pessoas que chegavam a São Paulo vindas de outras regiões do país, talvez alguns que partiam da cidade. Ou mesmo aqueles que, sabendo do serviço, o procuravam para enviar cartas a familiares e amigos queridos.

E o conteúdo? Imagine!

Descrições felizes de um novo emprego, da boa recepção na casa do parente em que estão alojados, do primeiro salário, dos passeios pela cidade, da partida de futebol no Pacaembu, da expectativa de visitar os familiares no próximo ano. O dinheiro, dobrado com cuidado, no envelope selado com o orgulho daqueles que, distantes, não se esquecem da pobreza e sofrimento dos que ficaram.
Em um daqueles dias, não resisti. Cheguei mais cedo à rodoviária e, diante de um escrevente um tanto perplexo, disse que queria enviar uma carta para meu filho. Mas não teria meu nome como remetente, teria o do Papai Noel! E assim foi feito. Palavras de carinho, afirmações de que o Papai Noel se lembrava de João Guilherme, conselhos para respeitar papai e mamãe (malandragem, não?!) etc.

E esperei. Se não me engano, levou cerca de uma semana ou pouco menos para a carta chegar. Certo dia, quando retorno de São Paulo, encontro João Guilherme eufórico. Havia recebido uma carta do Papai Noel!

Ele tinha cerca de dois anos de idade. Foi emocionante vê-lo falar da carta, mostrar a carta, ver toda a magia do natal concentrada, contida em um pedaço de papel.

João Guilherme nunca mais recebeu cartas do Papai Noel. Talvez preguiça minha, mas meu álibi é que deixei de tomar “ônibus de linha”. Mas quem sabe não me animo neste final de ano e dou uma passadinha pelo Terminal Tietê?

sábado, 12 de outubro de 2013

As frutas e eu

Vitaminas A, B1, B2, C, cálcio, ferro, fósforo etc.

Laranja - previne gripes e resfriados; maçã - combate diarreia; pera - atua contra a hipertensão e é diurético; banana - combate a anemia; maracujá - é calmante; abacate - age contra o reumatismo.

Com elas pode-se fazer salada de frutas, geleia, doce – figo, pêssego; torta – maçã, banana, morango; goiabada, marmelada, fritar – banana; comer com açúcar e limão – abacate.

Mas não é dessa forma que vejo as frutas.

Elas, acima de tudo, lembram-me situações, pessoas.

Quando pequeno, tio Aimoré passava em casa, com outros primos à tiracolo, e nos levava para a casa de nossa vó em Paranapanema. Enquanto ele ia pescar, nós ficávamos na casa da vó. Os quintais (sim, eram vários quintais separados por cercas) eram enormes. Brincávamos de tudo que se pudesse imaginar. Mas em relação à minha avó, ficou uma imagem: em várias refeições, ela botava uma banana no meio do arroz e feijão. Aprendi com ela a comer banana dessa forma.

Em certa época da vida, provavelmente por influência de propagandas que propalavam os benefícios dessa fruta cítrica, chupávamos laranja depois das refeições. Sempre. Acabado o almoço, lá ia minha mãe pegar uma peneira (lembra delas?), encher de laranjas e descascá-las para ela, para mim e minhas duas irmãs. Terminado o jantar... lá ia minha mãe... Um pouco maior, aprendi a descascar minhas próprias laranjas... sem janelas.

Lá pelos meus 9, 10 anos, no quintal da casa que alugávamos havia uma goiabeira. Ah, a goiabeira! Na época de fruta, todo dia, logo que chegava da aula, subia na goiabeira e disputava com os passarinhos os melhores frutos. Por um período, dois primos que moravam no sítio ficaram em casa para estudar. E a goiabeira tornou-se o abrigo ideal para as caverninhas que gostavam de fazer. Feita, o que esperávamos? A primeira chuva, para ver se era boa mesmo. Sempre saíamos molhados.

Meu contato com o morango foi indireto, por meio de iogurtes. Estes eram uma novidade. Conhecia coalhada, mas o iogurte era diferente – e com sabor. O que eu mais gostava era de morango. Foi uma época em que começávamos a consumir produtos industrializados e a acostumar com seus sabores. Ao morango, fruta, fui apresentado posteriormente.

Pequenino ainda, ao ir com minha mãe à feira aos domingos, a fruta que mais desejava que ela comprasse era melancia. Minha fruta preferida. Até hoje, não posso ver melancia e ficar sem experimentar. É uma paixão irresistível. Quem teve uma experiência com melancias foi minha esposa Claudia, quando estava grávida de nosso filho Timóteo. Primeira gravidez, transcorreu sem problemas e sem maiores desejos. Mas ao ouvir o vendedor na rua anunciando melancias, ela desejou comer melancia! E comeu. E comeu! Não consegui acompanhá-la. Dava gosto vê-la comendo melancia. Resultado? Passado o desejo, não podia mais ver melancia.

As frutas. Além de todas as suas propriedades, elas exercem a grata função de despertar minhas memórias. Doces, como as frutas, memórias.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Os reis e o livro

Como todo bom administrador, o rei estava preocupado com a deterioração no complexo de prédios do Templo. Por isso, providenciou que os reparos necessários fossem efetuados. Para arcar com os custos, enviou um de seus subordinados para recolher o dinheiro que se encontrava com o sumo sacerdote, fruto de ofertas do povo.

Qual não foi sua surpresa quando, além do dinheiro, o enviado trouxe o recado do sumo sacerdote afirmando ter descoberto o livro da Lei – provavelmente o livro ou o núcleo do livro bíblico do Deuteronômio.

Ao tomar conhecimento de seu conteúdo, o rei reconheceu que estava equivocado em sua administração, e que alterações deveriam ser realizadas. Reuniu o povo, leu o livro diante de todos e renovou o compromisso, seu e de seu povo, com Deus. Como consequência concreta da leitura, retirou do Templo os objetos de adoração a outros deuses e destruiu seus altares. Por fim, celebrou a Páscoa, reconhecendo que somente Deus pode libertar o ser humano.


O rei ouvia a leitura do rolo escrito por Jeremias com as palavras que Deus lhe havia falado. Anteriormente fora lido ao povo pelo servo do profeta, visto que este estava preso. A mensagem exortava o povo a abandonar seus maus caminhos e voltar a Deus. As autoridades reais, ao verem o alvoroço, chamaram o homem e tomaram conhecimento do conteúdo do livro. Ao ouvirem, ficaram assustados e decidiram levar o livro ao rei.

Antes do término da leitura, o rei tomou em suas mãos o rolo e, com uma faca, retalhou e jogou ao fogo o livro. O rei não apenas desprezou seu conteúdo como fez pouco caso dele.

Dois reis, duas atitudes diante do livro.

A primeira história, do rei Josias, está registrada no livro de Segundo Reis, capítulos 22 e 23. A segunda, sobre o rei Jeoaquim, está no capítulo 36 do livro do profeta Jeremias.

O primeiro rei reconheceu que sua administração continha princípios e ações equivocadas, de acordo com o livro lido. O segundo, embora igualmente exercesse uma administração condenável, conforme revelado pelo oráculo divino, manteve-se inalterável, não reavaliando sua gestão.

Entretanto, ambos foram atingidos pela mensagem dos livros. Ambos perturbaram-se com o que leram. Apenas a resposta à leitura foi distinta.

Tzvetan Todorov escreveu um livro intitulado A literatura em perigo. Argumenta que a literatura é frágil e que seu ensino, de modo geral, tem sido feito de modo equivocado, mas que, no entanto, ela continua cativando o ser humano.

Ao ler as duas histórias bíblicas, sem necessariamente discordar de Todorov, sou levado a pensar no oposto, em “o perigo da literatura”. A literatura tem um poder que se expande a partir da leitura. Pode ser para o bem ou para o mal, como as histórias dos dois reais mostram, mas, de qualquer forma, a literatura atua sobre nós.

Onde reside seu perigo? Em mostrar nossas fragilidades, nossos equívocos, nossa humanidade. Não quero dizer que a literatura deve ser instrumentalizada, tornar-se uma ponte para elaborações morais. Não. Mas que em sua simplicidade e complexidade, simpatia e rudeza, beleza e feiura, ela se coloca como um espelho diante de nós. E, ao fazê-lo, nos desarma e toma conta de nossa mente e coração. Esse é o perigo da literatura. Algo de que precisamos, de que somos carentes, que nos deslumbra e assusta, mas de quem não conseguimos nos desligar.

Sim, o perigo da literatura, a menos que sejamos o segundo rei...